quarta-feira, 16 de abril de 2008

Le Veilleur 2

É bem conhecido o texto de Rivette sobre Kapo de Pontecorvo, publicado nos Cahiers du Cinéma em 1961. Chama-se "De l'abjection" e torna palpável o lema segundo o qual o travelling é uma questão de moral:
Voyez cependant dans Kapo, le plan où Riva se suicide, en se jetant sur les barbelés électrifiés : l’homme qui décide, à ce moment, de faire un travelling avant pour recadrer le cadavre en contre-plongée, en prenant soin d’inscrire exactement la main levée dans un angle de son cadrage final, cet homme-là n’a droit qu’au plus profond mépris.
Como diz Serge Daney em Persévérance, não é preciso ter visto Kapo para de imediato concordar com Rivette, tal é a sua capacidade de nos oferecer, indiscutível, a visão desse movimento de câmara.
Em
Le Veilleur, curiosamente, há uma descrição do que pode ser a magia de um plano que é o oposto do desprezo a que Pontecorvo foi inapelavelmente condenado. Surge na última cena de Peaux de Vaches (1988) de Patricia Mazuy e vale a pena citar na totalidade, ainda que com as hesitações da fala e mesmo com os erros de transcrição que certamente haverá:
Ça m’arrive assez souvent, enfin, de rêver que je suis au cinéma en train de voir un film, avec des moments… J’ai vu des choses vraiment magnifiques, mais là je me réveillais et puis je ne pourrais pas le revoir, mais là j’ai pu le revoir, c’était effectivement sur l’écran, je n’avais pas rêvé.
C’est la scène, la dernière scène, où Jean-François [Stévenin] […] part sur la route (ça c’est un premier plan dans mon souvenir) et il y a un deuxième plan où on voit Sandrine Bonnaire courir vers lui, le rattraper, essayer de l’arrêter, et continuer à marcher tous les deux assez longtemps, en parlant, jusqu’au moment où ils tombent dans les bras l’un de l’autre, où ils s’embrassent, où Jean-François se tourne vers Sandrine Bonnaire et lui dit : « Pars avec moi avec la petite. » Tout ça c’est fait en un seul plan, à la main, je crois, un peu bousculé, mais sur le mouvement. Là encore c’est très beau mais la caméra accompagne les personnages.
Là on passe brusquement sur un gros plan de Jean-François – d’ailleurs la première fois que j’ai vu le film ce gros plan m’a choqué, parce que c’est coupé quand même ce plan très long, magnifique et tout – qui est purement son regard sur Sandrine Bonnaire après avoir posé la question. C’est un plan assez court, on a aussitôt après le contrechamp, le gros plan de Sandrine Bonnaire, qui ne répond pas, qui le regarde. Et puis son regard commence à bouger, elle-même commence à bouger, et là on comprend en son mouvement – elle va à la place où était Jean-François mais il n’est plus là, parti. La caméra continue à la suivre, la caméra est derrière elle, on la suit et on fait tout un mouvement derrière elle et on voit Jean-François qui s’éloigne sur la route, qui arrête un camion qui vient vers nous et qui monte dans le camion – tout ça à l’intérieur de ce plan qui est parti sur le visage d’elle.
La réaction de Jean-François sur le fait qu’elle ne répondait pas à sa demande, le fait qu’il parte, tout ça s’est passé off, on l’a uniquement sur le visage de Sandrine Bonnaire et son mouvement, et c’est fini, il est parti, il s’en va : c’est pratiquement le dernier plan du film. Ce plan, je l’ai trouvé vraiment magique. C’est très bien filmé et en même temps faisant passer l’émotion vraiment avec une invention de la caméra… Je crois qu’il faut être cinéaste pour le voir.

Le Veilleur 1

Passou a semana passada na Cinemateca - e, não há fome que não dê em fartura, acaba de sair em dvd como extra da edição da Arte de La Belle Noiseuse - o raro e lindíssimo filme que Claire Denis dedicou a Jacques Rivette, no contexto da série Cinéma, de notre temps. Jacques Rivette, le veilleur é fundamentalmente um diálogo entre o cineasta e o crítico Serge Daney, uma deambulação (no pensamento e na cidade) divida em duas partes, O Dia e A Noite (as duas forças - a lua e o sol - de cujo confronto nasce o cinema de Rivette). É o encontro de duas inteligências: Rivette mais esquivo, sorumbático, felino, por vezes teorizante, Daney arriscando interpretações, inventando-as ao ritmo da conversa, podendo ser ao mesmo tempo perverso e sem maldade.
O diálogo, até nos seus silêncios, é fascinante, mas há também a destacar um inteligente trabalho de montagem dos excertos dos filmes. Um exemplo: quando Rivette diz que não quer, despudoradamente, violar o actor, penetrar na sua intimidade, Claire Denis introduz como possível contradição a cena de L'Amour fou em que Jean-Pierre Kalfon rasga as roupas com uma lâmina e depois com uma tesoura. Outro: não é na altura em que Rivette fala da música de Piazzola a acompanhar o percurso de motocicleta de Pascale Ogier em Le Pont du Nord, olhando para as estátuas de leões, que vemos essa sequência; ela aparecerá mais tarde, quando Rivette compara a novidade da Nouvelle Vague ao Impressionismo. Porquê? Só pode ser porque a sequência dos leões é antecedida de um plano de Bulle Ogier com o metro em baixo que inegavelmente cita La Gare Saint-Lazare de Manet:

terça-feira, 15 de abril de 2008

Emitir comunicados é preciso

Até há dois dias, ainda não tinha percebido para que servia exactamente o acordo ortográfico, mas houve felizmente a entrevista do embaixador Seixas da Costa* no Público:
[...] o problema põe-se, por exemplo, quando é necessário assinar um texto comum, internacional. Cada vez que há um encontro entre Portugal e o Brasil, passamos a vida a fazer compromissos para escolher as palavras.
e o último artigo de Ruy Tavares:
[...] se os respectivos governos quisessem emitir um comunicado sobre o evento ["Letras em Lisboa"], teriam de emitir dois comunicados - um em cada ortografia.
Trata-se portanto de facilitar a vida aos burocratas. Já podiam ter dito.


* Gostei de que, na chamada de capa, se escrevesse "Seixas dos Santos" em vez de "Seixas da Costa". É bom sinal quando um jornalista troca o nome de um embaixador pelo de um cineasta. O contrário seria bem mais aborrecido. E burocrático.

quinta-feira, 3 de abril de 2008

Anónima acupunctura

[Sorry, é outra vez sobre aquele assunto que eu disse que ia evitar. Pus um bocadinho a bold ali em baixo para quem ainda só estiver quase farto desta conversa.]
Concordo em absoluto que há pessoas que percebem muito mais disto do que nós, Ivan, mas é daquelas coisas que nos diz respeito a todos e provavelmente não devia ser deixada só para especialistas. Aliás, parece-me que entre os cronistas mais destacados pouca gente se contém: do Rui Tavares a Vital Moreira, passando por VPV, são raros os que resistem. Eu já pensava ter arrumado mais ou menos a coisa na cabeça depois de escrever isto, isto e isto, mas os teus posts levaram-me a voltar ao assunto. Até tive paciência para ouvir as duas partes do debate que houve em Fevereiro na Casa Fernando Pessoa, principalmente para saber o que dizia Ivo Castro, que foi meu professor - e aproveitei para ver os defensores do acordo, Agualusa e Malaca Casteleiro, a serem um reduzido ao silêncio e o outro à incapacidade de argumentação.
Depois disto tudo aproximo-me progressivamente de uma atitude zen - ou, como diz Ivo Castro, jesuítica, aproveitando as desgraças o melhor possível (embora antes ele próprio tivesse dito que o acordo tinha desvantagens mas não era provavelmente uma desgraça).
Sobre a fraqueza que apontas aos meus argumentos - julgo que os do último post, espero que não tenhas perdido tempo a ler os anteriores - gostava de dizer uma ou duas coisas. Primeiro, as pobres consoantes mudas. Não sei que consequências para a pronúncia pode ter no futuro o seu abandono; o que quero rebater é o argumento dos defensores do acordo actual segundo o qual essas consoantes são apenas etimológicas: ora não são, e o critério do acordo de 1945 para as conservar foi precisamente a sua função fonética (abrir a vogal anterior). A ortografia é um compromisso possível (e negociável de tempos a tempos) entre a maneira como dizemos as palavras e a sua história, entre fonética e etimologia - por isso não escrevemos nem com o alfabeto fonético nem em latim. Um dos problemas deste acordo é impor um critério fonético para apagar consoantes que até desempenham um papel (indirecto) na pronúncia, ao mesmo tempo que mantém o h inicial (e puramente etimológico) em palavras como "húmido", "homem", "hesitar", etc. Dás o exemplo de "inflacionário", onde a pronúncia do a aberto não é assinalada; mas as vogais abertas que não são acentuadas são a excepção no português europeu, gerando até casos de hipercorrecção (gente que defende, sem razão, que se deve dizer "mestrado" com o e fechado, por exemplo). Com o acordo estas excepções aumentam muitíssimo, e sabendo da tendência do português europeu para fechar as vogais átonas não me admira que venhamos a ouvir que se deve dizer "adução" em vez de "adopção". E há obviamente a excepção contrária, ou seja, vogais que não abrimos apesar de terem à frente uma consoante muda: actriz, actual... aqui conservadas pelo acordo de 1945 por questões de consistência com outras palavras da mesma família onde se abre a vogal ("Óptimo" tem o p, embora com o acento não precisasse, por causa de "optimista". Teve aliás graça quando Carlos Reis, no seu artigo recente no Público, disse que até os italianos, herdeiros directos do latim, se viram livres do p em "ottimo" - sem pensar porque é que ali estavam dois tt e não um...) A ortografia é portanto um equilíbrio precário, com excepções e incongruências inevitáveis. Este acordo aumenta-as de forma imprevisível, pelo menos para nós que jogamos com as palavras de que a custo nos lembramos para exemplos. E sim, faz-me confusão escrever "espectador" e "espetáculo", "Egito" e "egípcio", "apocalítico" e "apocalipse", "infeção" e (para mim) "infeccioso", "caráter" e (para outros) "característica"...
Este "para mim" e "para outros" tem a ver com o maior problema do acordo, que é a facultatividade: não só vai continuar a haver diferenças inconciliáveis entre a escrita em Portugal e no Brasil (fenómeno/fenômeno, oxigénio/oxigênio, corrupto (cá) / corruto (lá), receção (cá) / recepção (lá)) como se abre espaço para a dupla grafia no mesmo país: assim, em Portugal, uns escreverão "sumptuoso" outros "suntuoso", uns "sector" outros "setor"... conforme pronunciem ou não a consoante (já agora e ao contrário do que eu tinha dito: "facto" não é um destes casos, já que no português europeu o c é sempre pronunciado). E no Brasil, onde se escreve "Antônio", há zonas onde se diz "António", portanto essa escrita também será possível. Ora a ortografia serve precisamente para que não haja este tipo de variação: existe num nível de abstracção para lá dos vários sotaques e pronúncias, senão uns escreviam "vaca" e outros "baca". Ivo Castro propõe que se criem sub-ortografias em cada país, sem facultatividade, que venham resolver este problema criado pelo acordo - talvez resulte, mas é um remendo para limitar os danos de um facto consumado.
Gastei o post quase todo nas questões "científicas", que se calhar nem são as mais importantes. É que não consigo ver quais são as grandes vantagens de uma semi-unificação ortográfica. Como já disse num dos posts anteriores, não é a grafia que faz difícil o Guimarães Rosa. Nem preciso de acordo (que aliás nisso não me ajudaria) para saber de que trata a canção "Cotidiano". Enquanto falarmos a mesma língua havemos de nos perceber o melhor possível, sabendo que é no léxico e na sintaxe, e não na ortografia, que estão as maiores diferenças. Estar a corrigir os livros todos, seja em seis anos ou em seis dias, representa um custo e um esforço insanos para resultados tão modestos. Durante uns tempos vamos andar todos a dar imensos erros ortográficos, e eu a irritar-me ainda mais ao ler o jornal ou a corrigir quem ainda escreve "excepção" e quem acha que agora se escreve "fato". Falei do custo em árvores. Estavam em vez da floresta.
Resumindo, este acordo:
- tem um objectivo inútil, ou quase, porque não é a ortografia que dificulta a comunicação entre os falantes do português
- nem sequer cumpre aquilo a que se propunha, já que continua a haver várias diferenças entre as grafias portuguesa e brasileira (estes dois pontos fazem dele um desperdício de recursos que podiam ser aproveitados para facilitar a circulação dos livros entre os países da "última flor do Lácio" - sempre regada a água do luso)
- tem falhas científicas, quer ao argumentar de forma inconsistente para excluir as consoantes mudas, quer ao abrir espaço para duplas grafias no mesmo país, contrariando a própria noção de ortografia
- já me fez perder muito tempo, mas confesso que até gosto destas discussões chatas que costumam esvaziar os lugares à minha volta

[Quanto ao trema: não me importava nada que ainda existisse, mas graças ao acordo os brasileiros é que vão ficar sem ele.]

Praga, 1968

Interrogator We're supposed to know what's going on inside people. That's why it's the Ministry of the Interior.
Tom Stoppard, Rock 'n' Roll