sexta-feira, 25 de julho de 2008

Resposta a Rui Tavares

[É uma chatice: concordo com tudo o que o Rui Tavares escreve, menos quando ele escreve sobre o acordo... Aqui fica o comentário que deixei no cinco dias à crónica do Público de ontem.]

Caro Rui,
Também acho que estás enganado quanto à terminação "eia". Confiando na minha (falível) memória auditiva, parece-me que há em Portugal pelo menos três formas de concretizar foneticamente essa sequência, sendo que em nenhuma delas há vogais abertas ou semi-abertas: "êia" (no Norte), "âia" (em Lisboa) e "êa" (no Alentejo). Mas dentro de cada variante regional, as palavras ideia, assembleia, feia, meia, areia e europeia são sempre pronunciadas com a mesma terminação. O que quer dizer que em Portugal, independentemente das suas concretizações fonéticas, há no nível fonológico apenas um ditongo, que na escrita representamos convencionalmente por "ei". Já no Brasil há dois fonemas, dois ditongos nesta lista de palavras: "êi" (em feia, meia, areia) e "éi" (em idéia, assembléia, européia). Ou seja, no Brasil e ao contrário de Portugal é possível imaginar palavras (pares mínimos) que se distinguem apenas por uma ter o fonema "ei" e outra o fonema "éi" (e não é preciso imaginar apenas: "aréia" é o feminino de "aréu"). Portanto antes do acordo temos: em Portugal, um fonema, uma grafia; no Brasil, dois fonemas, duas grafias. Não admira portanto que os brasileiros resistam a uma perda da adequação da escrita à fonética.
Também acho que a Manuela tem toda a razão ao pôr em causa a ingenuidade do "se desejo continuar a escrevê-lo, devo pronunciá-lo". É óbvio que se eu passar a pronunciar as consoantes mudas de acção, correcto e espectáculo vou apenas afastar-me da pronúncia-padrão, sem com isso ter o bónus de poder conservá-las na escrita... Já quanto às grafias duplas previstas no acordo veremos: no par recepção/receção, que antes do acordo se escrevia da mesma maneira, certamente que apenas a primeira forma será aceitável no Brasil e apenas a segunda em Portugal; quanto a casos como característica/caraterística admito que possa ficar ao critério de cada um, mas não estou a ver os revisores dos jornais e das editoras a telefonarem aos autores para os ouvirem a dizer determinadas palavras - caso aliás mais complicado para as reedições de autores mortos.
Não duvidando eu da bondade da tua posição ao veres vantagens neste acordo, o problema desta tua afirmação é a ideologia que lhe subjaz, a de uma crença ingénua na capacidade individual de usar e mudar a língua, falando e escrevendo como queremos - acho que é o Barthes que nos lembra que a linguagem é totalitária (a literatura é que pode ser uma forma de resistência). Tu próprio dás um exemplo desta máquina implacável a funcionar: bem podes na tua liberdade escrever "estado" (logo a escolha da palavra é sintomática, podias ter optado por "primavera"!) que te corrigem para "Estado". Este individualismo liberal que preconizas faz-me lembrar uma citação da Eduarda Dionísio:
"Pouco tempo antes, [António-Pedro Vasconcelos] defendia na televisão, depois da emissão de uma Casablanca a cores, versão aggiornada que a técnica e o marketing coloriram, que quem quisesse podia vê-la a preto e branco: bastava rodar um botão... Tinhas percebido nessa noite o liberalismo em toda a sua dimensão." (Títulos, Acções, Obrigações, p. 72)

Adenda de 26/7:
Acabei de escrever [mais] um comentário quilométrico [ao post do Rui] que se perdeu no éter quando carreguei no submit. Nele dizia:
1. que na minha contribuição anterior acertei por acaso na proposta de Lindley Cintra para os dialectos portugueses quanto à distribuição do ditongo "ei" (conservação do "êi" a norte, monotongação "ê" a sul e diferenciação "âi" em Lisboa);
2. que aceitava o testemunho do Rui Tavares para a diferença entre "ideia" e "tareia" nalguns dialectos portugueses (a norte?), apesar de pelo menos em Lisboa isso não se verificar - o que de qualquer modo transforma a frase "Os portugueses pronunciam o “e” aberto em ambas as palavras [ideia e assembleia]" numa sinédoque onde se toma a parte (Rui Tavares) pelo todo (os portugueses);
3. que mesmo admitindo essa variação de pronúncia ela não tem a mesma expressão que no Brasil, onde é consagrada pela escrita e tem carácter não só fonético mas fonológico - no Houaiss há 95 palavras em "eia" (aldeia, areia, teia) e 257 em "éia" (boléia, geléia, platéia) e o grau de abertura do "e" é o traço distintivo que permite separar pares de palavras (pares mínimos) como Medéia/medeia (do verbo medear) e boléia/boleia (do verbo bolear), tal como em Portugal e no mesmo ditongo o acento distingue "papéis" de "papeis";
4. que nos Lusíadas (I, 34) "Citereia" e "Deia" (que no Brasil têm acento) rimam com "arreceia" (que não tem);
5. que, recusando catastrofismos de um lado e de outro, via as previsões do Rui Tavares, no comentário de ontem, para a influência do acordo na fala como puro "wishful thinking", chegando a anunciar um conveniente regresso em Portugal do "p" mudo em "recepção" e "percepção" (nunca os ouvi): precisamente duas das palavras que com o acordo se vão passar a escrever de maneira diferente...
Bom, se por acaso o outro comentário aparecer podem apagar este; ou o outro; ou os dois. Vou agora cruzar os dedos quando carregar no submit, não sem antes copiar tudo para o blogue porque mais vale prevenir. Assina mais um linguista amador que diz não à rehab.

Adenda à adenda: a tecnologia é tua amiga. O outro comentário lá apareceu no 5 dias. Mas deixo ficar aqui este, resumo e ruína, porque me estou a sentir borgesiano, ou romântico alemão.

segunda-feira, 14 de julho de 2008

O centro e a margem no Festival de Edimburgo

Foi à volta do Festival Internacional de Edimburgo (EIF) que cresceu o Fringe, com tal desmesura que o núcleo inicial deixou de estar no centro para ser a margem (mas uma margem com um orçamento substancial). Para alguns, como o crítico do Guardian Michael Billington, o EIF funciona agora um lugar de resistência contra a padronização indiferenciada do Fringe, que foge da experimentação e procura a fórmula segura, quando não abertamente comercial (é preciso não esquecer a posição privilegiada que, neste festival, ocupa a stand-up comedy). Isto é em parte verdade e uma das causas pode estar no “Internacional” do título: uma companhia como os tg STAN, que apresentou o espectáculo Lucia Melts no EIF, dará inevitavelmente à clássica peça de casal (separação, reencontro, discussão, reconciliação) uma volta inesperada, uma respiração lúdica de que o típico realismo britânico mais dificilmente é capaz — e Sara de Roo e Steven van Watermeulen são mesmo extraordinários, leves nas suas personagens como Gena Rowlands e John Cassavetes na peça de Opening Night, de que aliás se fala no texto de Oscar van den Boogaard.
Outro risco que o EIF se pode dar ao luxo de correr passa pela presença de grandes elencos, grandes companhias e encenadores, longos espectáculos (este ano houve mesmo a peça longa por excelência, o Soulier de Satin de Claudel encenado por Olivier Py, com Jeanne Balibar em Prouhèze). Foram alemãs duas das apostas mais aplaudidas deste festival e estão em pólos opostos, de tal forma que é possível construir uma série de pares dicotómicos: adaptação/texto integral, brevidade/duração, imobilidade/fluxo, elegância/crueza, Schaubühne/Berliner Ensemble, Luk Perceval/Peter Zadek.
Perceval pegou na Andrómaca de Racine, reduziu o texto ao que achou ser o osso (sem alexandrinos) e colocou as personagens num friso em cima de um altar (de granito, mármore ou metal, as opiniões dividem-se) rodeado por um mar de garrafas vazias. Da esquerda para a direita, com os movimentos reduzidos ao mínimo, Orestes, Hermione, Pirro, Andrómaca, Pílades. É a orientação do amor não correspondido, se excluirmos o último — observador quase exterior ao drama, manipulador devido à sua relação ambígua com Orestes.
Esta é a tragédia dos filhos dos heróis da guerra de Tróia, que prolongam a guerra por outros meios (sendo a única mãe a personagem que dá o título à peça): Orestes é filho de Agamémnon e Clitemnestra, Hermione de Menelau e Helena, Pirro de Aquiles. Luk Perceval escolheu o amor em detrimento da política e encheu o texto de silêncio (num espectáculo que dura menos de uma hora) e violência contida: só num momento, a fúria suicida de Hermione — cujo desespero tinha sido anunciado mesmo antes da abertura do pano, partindo metodicamente garrafas contra o altar/ilha — a voz exterioriza a emoção, ausente até na fala final de Orestes (“Quero afogar-me no meu sangue”).
O gesto de actualização do mito pode passar por uma trivialização, mas não deixa de fazer lembrar alguma dramaturgia contemporânea: o minimalismo de Jon Fosse (e Perceval encenou Sonho de Outono) e o romantismo desesperado de Sarah Kane (a disposição cénica podia servir para o quarteto de Falta). As dúvidas que o espectáculo suscita têm a ver com a estilização excessiva de tão perfeita, uma depuração tão procurada que se pode tornar estéril e pretensiosa. O melhor antídoto é mesmo o Peer Gynt de Ibsen encenado por Peter Zadek.
A primeira cena faz-se entre mãe e filho no palco vazio, com as luzes da sala acesas. Poucas vezes o palco se encherá de outra coisa que não actores e algumas tralhas velhas, as luzes da sala nunca se apagarão e Uwe Bohm (Peer) e Aase (Angela Winkler) são desde logo assombrosos. Nas primeiras cenas do espectáculo, as da juventude do herói, percebe-se onde Brecht foi procurar o seu “Baal”: a efabulação permanente, a energia, a insaciabilidade sexual, um estado de inocência que pode ser cruel (a noiva raptada em pleno casamento que logo deixa de interessar). Depois vêm os trolls, o comércio de escravos, o harém, a esfinge, o asilo, o naufrágio... Zadek não hesita, como a personagem, em ser rude e desbragado, opta por um estilo de simulada improvisação e não se rala com o mau gosto: a cabana que Peer constrói para a amada Solveig é feita de cadeiras empilhadas, as mesmas que, com uma roda de bicicleta, fazem o barco em plena tempestade; as ondas são os actores rebolando-se no chão e agitando os braços, como se de datadíssimo teatro experimental se tratasse; e o louco que julga ser uma pena de escrever corta o pescoço à boca de cena, quase salpicando os primeiros espectadores. Também o texto monumental de Ibsen é posto à prova, desromanticizado, tratado com ironia sem deixar de ser amado: é assim que, passados anos, Solveig espera ainda Peer mas já não na cabana e sim num prédio de muitos andares (um telão com quadrados a fazer de janelas), e que a cidade se chama agora “Nova Haegstad”; e Peer descasca a simbólica cebola numa roulotte de comes e bebes com menu da Coca-Cola. A cebola, já se sabe, tem muitas camadas e tal como Peer não tem centro. Parece mesmo o Festival de Edimburgo.

[Público, Setembro de 2004]

Four years

Esteve este fim-de-semana em cena no Festival de Almada o Peer Gynt de Ibsen encenado por Peter Zadek, julgo que com lotações esgotadas como deve ser. Dá-se o caso de ter tido a oportunidade o espectáculo quando estreou há quatro anos, em Edimburgo. E dá-se ainda o caso de ter nessa ocasião escrito para o Público duas críticas, uma sobre o Fringe e outra sobre o Festival Internacional (onde se incluía a produção de Zadek), numa altura em que ainda não se davam estrelas, não existia P2 e havia (havia?) mais alguns caracteres onde dizer mais alguns disparates.
Como acho muito improvável que alguém que agora veja o espectáculo (ou tenha querido fazê-lo) se lembre de já talvez ter lido sobre ele há quatro anos (mesmo quem disso teria obrigação), achei que podia ter interesse recuperar para aqui o texto em causa. Não posso é garantir que seja útil para os espectadores de hoje. É que não revi desta vez o espectáculo, não faço ideia se terá mantido as suas qualidades ou defeitos; e como não juro pela minha memória do dito não posso garantir que esteja certo o que escrevi em 2004 (embora, generoso, me dê o benefício da dúvida). Há ali coisas de que não gosto especialmente (o que significa dizer que um actor é "extraordinário", ou "assombroso"?), e a curiosidade de fazer a Zadek um elogio parecido com o que faço a Žižek ali em baixo. De resto quem não gostou do espectáculo agora ou discordar do texto vai ter mesmo de discutir comigo em 2004: a noite já vai longa e tu dormes neste quarto emprestado em Hackney - mas o email é o mesmo.

sexta-feira, 11 de julho de 2008

Em nome de um amor verdadeiro

Kieslowski, Hitchcock, Tarkovski e Lynch à luz de Lacan e do materialismo

Slavoj Žižek
Lacrimae Rerum
Orfeu Negro, 2008,
trad. Luís Leitão,
276 págs.

Já com alguns títulos publicados em Portugal na Relógio d’Água, Slavoj Žižek (n. 1949) tem uma aura de estrela pop e é um dos pensadores mais estimulantes da actualidade. Entre o YouTube e a academia, ambos os atributos se alimentam mutuamente, numa estratégia que procura chegar ao máximo de pessoas sem ceder um milímetro na exigência da argumentação. A combatividade do filósofo esloveno identifica claramente os seus inimigos (obscurantistas, desconstrucionistas, apologistas do fim da História e das ideologias), assume as bandeiras dos “instauradores de discursividade”, Marx e Freud (via Lacan) e adora a provocação e o paradoxo. Como bom materialista, não teme o mau gosto, e o seu estilo ensaístico, digressivo, mistura a alta e a baixa cultura, podendo abordar, como em Lacrimae Rerum, as telenovelas mexicanas e Così fan tutte, Kleist e James Bond, a diferença entre moral e ética e o sexo anal em Cuba. O documentário de Sophie Fiennes que Žižek protagoniza, The Pervert’s Guide to Cinema (2006), podia servir como extra deste livro: conta com o poder demonstrativo das imagens de muitos dos filmes referidos e permite corporizar a intensidade veemente do seu discurso.

Lacrimae Rerum é um livro onde se pode ver em acção a máquina de produção textual de Slavoj Žižek. Não é uma obra concebida enquanto tal, embora tenha uma unidade que resulta de juntar quatro ensaios sobre quatro cineastas escritos durante o mesmo período (1999-2001). Destes textos, abreviados para a publicação conjunta, dois eram livros independentes (Kieslowski e Lynch) e dois eram artigos, disponíveis online e já reunidos em obras colectivas (Hitchcock e Tarkovski). A colectânea, primeiro editada em França, é um hábil trabalho de montagem, embora deixe costuras à mostra: o texto sobre Kieslowski remete para um capítulo anterior que já não existe, há aspectos “atrás referidos” que não o foram e exemplos repetidos tal e qual, sem preocupações de reescrita.
A circulação de exemplos e anedotas entre vários livros é aliás própria do estilo de Žižek, funcionando de modo semelhante aos motivos recorrentes na obra de Hitchcock (a espiral, a personagem prestes a despenhar-se…), na medida em que, inseridos na argumentação/narrativa, representam um excesso (jouissance, diria Lacan) relativamente ao sentido que é muitas vezes aquilo que persiste na memória fascinada do leitor/espectador. A digressão é outra característica da escrita de Žižek, interrompendo a análise de um autor para explorar longamente caminhos paralelos que se estendem pelas notas de rodapé e voltar, quando já nada o fazia prever, ao assunto abandonado, como cartas amarrotadas que acabam por chegar ao seu destino.
“A teologia materialista de Krzysztof Kieslowski” lê a obra do realizador como um percurso onde até a sua própria morte encaixa na interpretação. Sendo o mais longo dos textos (metade do livro), o mais recente e também aquele de onde vem a citação de Virgílio que dá o título ao volume, é o que contém mais dos tais excursos repletos de iluminações, podendo ler-se como hipertexto que remete para os ensaios seguintes nas referências que faz aos outros cineastas – e particularmente a Tarkovski, “o homólogo russo de Kieslowski”. No caso destes dois autores o propósito de Žižek é semelhante: reler os seus filmes não à luz da espiritualidade e do “obscurantismo New Age” habituais mas com uma lente materialista, sublinhando no russo o peso da terra e a densidade do tempo e, no polaco, uma tensão não resolvida entre o significado que subjaz misteriosamente aos acidentes ou que pelo contrário é um produto desses mesmos acidentes. Se Žižek os redime (com ironia, não pelo lado místico mas pela fisicalidade dos seus filmes), continua a haver neles um momento falso a denunciar.
Também em Lynch espreita a leitura espiritualista, mas aqui, apesar dos seus defeitos, Žižek vê-a como superior àquela que se contenta com a ausência de sentido de imagens e sons hipnóticos. Estrada Perdida é analisado como uma sequência realidade-fantasia-realidade, onde o protagonista passa de um nível para outro quando é incapaz de lidar com o mesmo trauma apresentado de diferentes modos, e, depois, aproximando a sua circularidade da da própria terapia psicanalítica. Já o texto sobre Hitchcock, mesmo na apologia que faz da sobreinterpretação, é menos ambicioso do que os que figuram em Everything You Always Wanted to Know about Lacan (But Were Afraid to Ask Hitchcock).
Lacrimae Rerum é uma boa súmula da atenção que Žižek tem dedicado ao cinema, não apenas através da apropriação selvagem com o fim de pôr a nu os mecanismos ideológicos mas em nome do mesmo “amor verdadeiro” que, em Psico, faz Norman Bates dar a Marion a chave do quarto fatídico... A tradução é conseguida, embora não imune a críticas: “crane shots” primeiro mal (“planos dos guindastes”) e depois bem (“planos de grua”), confusão entre A Mãe e Mãe Coragem de Brecht e “valor acrescentado” em vez de “mais-valia” são alguns dos (poucos) problemas encontrados numa tarefa dificultada pela amplitude das áreas em que Žižek se move.

[Expresso-Actual, 05.07.08]