sábado, 31 de março de 2007

Auto-referencialidade

Este é o único post deste blog sobre a polémica do Salazar.
[Já o cartaz do PNR foi remetido para uma nota de rodapé escrita dois dias depois.]

Gente boa

Não temos todos de ser boas pessoas. Mas temos de escolher bem as pessoas más de quem gostamos.

Memory Lame

Conversa na faculdade. Ele falava de um momento da associação (idade de ouro) onde a harmonia reinara e que eu por acaso tinha conhecido, sem dar por tanta harmonia. Lembrava-me bem de pelo menos dois outros "momentos" anteriores a esse que para ele era o passado mais recuado (hieróglifos que só para mim ainda guardavam algum sentido: e, Chave, D, H). Ou estou a ficar velho, mesmo sem dores no joelho, e deixando por isso de ter a razão pelo meu lado. Ou o tempo ali é diferente, uma vida em quatro anos e tudo escuro antes e depois. Ou ambas.

Rivette.com


Se não fosse a F., ainda não saberia da existência deste belo site a preto e branco e letra de máquina - o que só vem mostrar a seriedade com que ando a trabalhar nestas coisas. Como atenuante, o facto de só existir desde 13 de Fevereiro. Em francês não há, que eu saiba, nada de equivalente a esta "Order of the Exile", um sério e precioso "labour of love" de dois fãs americanos de Rivette - depois das retrospectivas em Londres e em Nova Iorque (e agora no Beaubourg), está em alta o interesse por este metteur en scène cada vez menos secreto. Lá estão, por exemplo, textos do livro Rivette: Texts and Interviews que Jonathan Rosenbaum organizou e que estava esgotado há muito; ou o artigo do mesmo Rosenbaum, "Work and Play in the House of Fiction", que pacientemente fotocopiei na biblioteca da Cinemateca e ainda anteontem reli.
À atenção, naturalmente, do Alexandre.

quarta-feira, 28 de março de 2007

Vanité que la peinture



Expostos em salas muito escuras, alguns quadros de Rothko ficam cheios de humidade.

Letras - Breaking News

Graças ao LPF que ficou lá até estas horas e ao Rui Guilherme Lopes, que era o presidente da mesa da RGA, posso desde já avançar (sempre quis dizer isto) que a lista U ganhou com 818 votos contra 81 da lista x (a de extrema-direita). Houve ainda 24 votos brancos e 19 nulos. Em percentagem de votos expressos, isto dá uma vitória de 90,99% contra 9,01%. A contagem decorreu insolitamente à porta fechada e não houve incidentes. Relativamente ao ano passado, a participação dos estudantes terá pelo menos duplicado: um bom sinal, mesmo se o total de votantes não ultrapassa os mil.
Ao passar hoje pela faculdade percebi que ainda não era desta que uma lista assim colocaria reais problemas. Nem sabiam que podiam concorrer também à mesa da RGA e ao Conselho Fiscal, portanto só apresentaram lista para a AE; e os papéis espalhados pelas paredes eram confrangedores, não havia uma ideia nítida ou uma frase bem construída. Erros como a boa relação da AE com o Conselho Directivo ser "de salutar" (devem ser alunos de Latim); e propostas como "para o teatro aceitamos sugestões" (até o Rui Rio sabe que teatro é para acabar). Isto no meio dos tais protestos de que são uma lista "apolítica" (devem querer dizer apartidária), com afirmações de que têm pessoas de várias cores, ideologias e até religiões na lista (como aquelas pessoas que dizem que "têm amigos que são"). Só da orientação sexual é que não falam, também não é preciso exagerar.
Mais assustadores são os vários autocolantes do PNR nas casas de banho. E o facto de esta gente (ali ou noutro sítio, por exemplo nas escolas secundárias) numa próxima oportunidade voltar com mais força e tendo aprendido mais uns truques do "jogo democrático".
Quinta-feira às 15h30, na esplanada da faculdade, há uma conversa com o SOS Racismo, Eduarda Dionísio e José Mário Branco. Vemo-nos lá?

terça-feira, 27 de março de 2007

O Mural e o Moinho

Soube da situação em Letras por mail e pelo que li aqui, antes da capa do P de hoje. É obviamente preocupante que esta gente apareça sequer, e o clima de ameaça que se vive na Faculdade desde a tentativa de pintura do mural é repugnante. Não sei se, com base nos estatutos, a lista x (que se diz apolítica mas é faXista) poderia ter sido recusada; o que agora interessa é que, sete anos (!) desde que acabei o curso e participei numas eleições para a Associação de Estudantes, lá vou votar outra vez enquanto aluno de pós-graduação - a ver se a coisa não dá para o torto. Não faço ideia se as probabilidades de a lista x ganhar são fortes ou fracas, mas sei que não são precisos assim tantos votos para ganhar uma AE.
Lembro-me de com o Pedro Rodrigues ter feito um vídeo para a Abril em Maio onde entrevistávamos vários dos que "nasceram depois" (do 25 de Abril): a Mariana, o Omar, o Zé João... entre eles estava o Paulo Afonso, que na altura julgo trabalhava na Reitoria. Maldosamente pusemo-lo a repetir três vezes uma frase sobre a importância (política) de cada um "levar a água ao seu moinho". Hoje no P (sem link) o mesmo Paulo Afonso justifica a abstenção dos estudantes dizendo que estes vêem a AE como "uma rampa de lançamento de carreiras políticas". Não vejo nisso nenhum problema (é aliás este sentimento anti-políticos que faz com que nasçam listas de extrema-direita "apolíticas"), mas não deixa de ser cómico que o Paulo Afonso seja apresentado pela jornalista como "ex-dirigente académico e actual autarca".

segunda-feira, 26 de março de 2007

O Valor do Vento

Está hoje um dia de vento e eu gosto do vento
O vento tem entrado nos meus versos de todas as maneiras e
só entram nos meus versos as coisas de que gosto
O vento das árvores o vento dos cabelos
o vento do inverno o vento do verão
O vento é o melhor veículo que conheço
Só ele traz o perfume das flores só ele traz
a música que jaz à beira-mar em agosto
Mas só hoje soube o verdadeiro valor do vento
O vento actualmente vale oitenta escudos
Partiu-se o vidro grande da janela do meu quarto
Ruy Belo, Homem de Palavra[s], 1970

ACTUALIZAÇÃO: o vidro do armário da cozinha custou seis euros; e não foi o vento, foi a Jackie.

North by Northwest ou o valor do vento


I am but mad north-northwest; when the wind is southerly I know a hawk from a handsaw.
Hamlet, II, 2

É possível que o título do filme de Hitchcock venha desta citação do Hamlet: NNW como a direcção da loucura, neste filme-itinerário que, desde que Cary Grant/Roger Thornhill é confundido com George Kaplan no bar do hotel Plaza, não pára um segundo, de Nova Iorque a Chigago até ao Monte Rushmore (sempre "in a northwesterly direction", um dos títulos provisórios). Há várias ligações com a peça, desde a intriga edipiana à falsa loucura na cena do leilão ("an antic disposition", diz o dinamarquês em I, 5) e até uma "peça dentro do filme", com o falso assassínio de Thornhill na cafetaria. Stanley Cavell tem um artigo de 1981 onde fala disto e muito mais.
Mas voltando à citação: a frase tem gerado problemas de interpretação que se concentram na distinção entre o "falcão" e a "serra" e suas eventuais alusões. Só que as dificuldades começam antes: se lermos só até ao ponto e vírgula, a loucura pode ser entendida como um ligeiro desvio da agulha em relação ao norte, que representaria a razão, o discernimento (é o que diz a nota da edição da Oxford); mas quando o sul entra em cena, parece que é a direcção do vento que determina a oscilação entre sanidade (quando sopra de sul) e loucura (quando de NNW). Em North by Northwest, longe de oscilar, o vento sopraria então incansavelmente não de mas para NNW, empurrando Cary Grant até ao precipício com as estátuas dos presidentes.
Nova complicação: tanto Hitchcock como o argumentista Ernest Lehman afirmaram ter percebido depois de concluído o filme que a direcção "north by northwest" não existe. Sempre achei estranho, porque pensei que correspondia ao português "nor-noroeste" e era uma variante da forma que aparece na citação do Hamlet. Mas parece que há mais na rosa-dos-ventos do que sonha a nossa geografia: o título do filme mistura NNW (north-northwest, nor-noroeste, 337,50º) e NWbN (northwest by north, noroeste por norte, 326,25º). North by Northwest é então uma direcção inventada, tal como o agente fictício George Kaplan - que melhor nome para a desrazão deste "Hitchcock picture to end all Hitchcock pictures"?
Nunca vi o filme de Rivette Noroît, que é um dos nomes do vento de noroeste (NW, noroeste, 315º). O título não pode deixar de ser uma homenagem assumida a Hitchcock. Temos então, de Shakespeare a Rivette, a agulha da razão progressivamente mais afastada do norte: NNW, NWbN, NW. Ou então é a loucura que muda como um cata-vento ("yet there is method in it", II, 2). Resta dizer que Noroît se inspira em The Revenger's Tragedy (1608) de Cyril Tourneur, peça que tem óbvias referências ao Hamlet.
Em português, North by Northwest chama-se, como é evidente, Intriga Internacional.

sábado, 24 de março de 2007

Andar a pé faz bem

E se um peão for sempre em frente transforma-se numa rainha, como a vallera já descobriu. Desde que não se ultrapassem as doses homeopáticas de Sarah Silverman...

De como se perde uma noite e depois ainda se tem a lata de confessar

Sinal dos tempos, antes sequer de pôr aqui imagens à antiga, daquelas que não mexem, já ando à pesca no YouTube. E estreio-me com 52 segundos de uma cómica que já tinha apanhado no Conan e no Leno; ao ler ontem o Stephen Merchant no Guardian fixei o nome - Sarah Silverman - e depois foram horas a ouvir coisas piores do que as que o Edward Norton diz ao espelho no 25th Hour, mas em versão de comédia musical (há canções delirantes). Como de costume com muita da comédia recente (é ver vários episódios seguidos do Curb Your Enthusiasm) acaba-se um bocadinho mal disposto, mas no dia seguinte já passou e tornámo-nos pessoas piores. E lá se foi a compostura do blog, uma eternidade a construir (desde segunda-feira!), um clique apenas a desbaratar.

É preciso que um espelho esteja aberto ou fechado

Le miroir pivote comme une porte, découvre un passage obscur, puis se referme; deux fois, trois fois, DEBORAH recommence le même mouvement.
Jacques Rivette, Phénix

Do outro lado, espreitou a Mãe da Alice e do Pedro. Olhei para o relógio: não tinha pressa nenhuma. Mas como não viu girafas, a Alice foi para o YouTube.

sexta-feira, 23 de março de 2007

Literatura Portuguesa II

o sol é grande caem co’a calma as aves as sombras não mas a memória delas das sombras não mas de passarem aves passam as aves em seu voo rasante desde sá de miranda até jorge de sena mas sem sol grande as aves não se movem nem já não caem com a calma as aves tenho uma visão do corpo da ave como o seu cadáver calmo já caem com a calma as avestruzes o sol é grande as sombras não passam as aves em seu voo rasante mas sem sol grande tenho uma visão do corpo da ave com a calma o sol é grande mas sem sol grande tenho a calma o sol a calma soma

quarta-feira, 21 de março de 2007

Post de 10 de Fevereiro

O meu contributo para a campanha do referendo foi ter usado um pin durante um dia: depois ficou esquecido na camisola e só o recuperei depois da votação. Mas gostava de ter escrito na altura qualquer coisa como o que segue.
Pareceu-me claro que havia uma interferência entre duas opções dicotómicas: a IVG e a própria ideia de referendo. Num referendo só há duas hipóteses, sim ou não; com a IVG é o mesmo, ou se faz ou não se faz. Não há alternativas, zonas cinzentas, continuidades (ao contrário, por exemplo, da regionalização). A analogia entre duas escolhas de sim ou não (a pergunta e o assunto da pergunta) gera portanto uma confusão possível entre a decisão individual da mulher que pensa abortar e a decisão individual do eleitor a quem se pede uma opinião sobre a despenalização da IVG em determinadas circunstâncias.
O erro (histérico) de muitos defensores do não foi, em vez de se imaginarem legisladores (é o esforço ficcional que nos pede um referendo), alucinarem-se no lugar da mulher que vai ou não abortar: "Abortar por opção sabendo que já bate um coração?/ Não obrigada" - assim mesmo, no feminino (e sem vírgula, o que é outra conversa). [Uma variante de alguns “nãos” masculinos foi porem-se no papel do pai que não tem uma palavra a dizer, como se houvesse outro caminho que não a escolha da mulher em caso de empate…]
Para além disso, ao projectarem-se numa situação virtual concreta, os que votaram não construíram um “outro” demasiado esquemático e parecido com o “mesmo”: a imaginação não chega para tudo e não é possível inventariar todos os casos individuais de mulheres que põem a hipótese de abortar. É também desta alucinação que vem a ideia de que a opinião sobre a IVG é uma questão de consciência individual: é verdade, mas só para a mulher que está grávida. O transfert operado por muitos defensores do não, ao tentarem que a alteração do código penal de um país caiba no espaço de decisão de uma mulher fictícia, é de uma enorme violência para as mulheres reais.
[Como ainda se fala por aí de umas comissões de aconselhamento (mais uma vez, os representantes de uma máquina sem rosto a substituírem-se à decisão pessoal), talvez este texto venha a tempo de me fazer esquecer a história do pin.]

Lição nº 2

Un peu de poudre, un peu de rouge, une actrice est toujours jeune.
Jean Renoir, Le Carrosse d'or, 1953

Lição nº 1

Porque no teatro é tudo a fingir, a coisa mais importante no teatro é a honestidade.
Luís Miguel Cintra
programa de Anfitrião de António José da Silva,
grupo de teatro da Faculdade de Letras, 1969

terça-feira, 20 de março de 2007

The Art of Posting

O Tiago Cavaco destilou os três primeiros posts deste proto-blog numa só imagem, com ironia e talvez uma ligação directa ao meu inconsciente. Damn. Isto quem sabe, sabe.

segunda-feira, 19 de março de 2007

Lonesome cowboy

A julgar pelos aniversários que se têm comemorado, ando a ler blogs há mais de quatro anos. Coluna Infame, Blog de Esquerda, umblogsobrekleist, Voz do Deserto, País Relativo, Gato Fedorento... Cheguei a escrever aqui, intermitentemente, com ausências prolongadíssimas e regressos por vezes intempestivos. Um blog colectivo tem esse conforto, há quase sempre alguém que se lembra de qualquer coisa para dizer. E a partir de certa altura torna-se cada vez mais difícil escrever, o próximo post depois de tanto tempo tem de ser significativo, pensado, trabalhado. Nunca chega o momento certo, ou quando chega lá vem outro colaborador que decide escrever dez de seguida, cheio de som e fúria, imagens e links, afundando o que a custo postámos nos confins da página ou até, com alguma sorte, directamente nos arquivos. O BdEII, onde tanto gostei de escrever algumas coisas (thanks, ZM), estava muitas vezes em hora de ponta, o que é óptimo para ter leitores e debate e comentários, e isto às vezes passados segundos; mas às vezes torna-se num campo de batalha e nem sempre estamos preparados (eu não estava) para a violência das reacções, injusta ou não, mas que agride e invade sempre. Provas de virilidade.
Há muito tempo que andava a pensar ter um blog I could call my own, sempre quis abrir o blogger e seguir as instruções, escolher um template, arrumar os links, e agora? Mas não tinha título, não tinha tempo, sabia que passado o entusiasmo inicial a coisa morria. Continuei a ler, quase só blogs individuais por causa do silêncio, é só olhar para a lista ali à direita. E depois de desesperar com as parcas actualizações destes "favorites" (sim, sou eu quem faz "refresh" várias vezes para ter a certeza de que não há nada novo), pensei que também eu podia escrever assim pouco como às vezes alguns deles. Nada durante um mês? Não faz mal: também eu quero escrever um post ameaçando poucos posts no futuro próximo. Sem dramas ou com muitas mortes e ressurreições, porque não? Mas ir falando, balbuciando umas frases, mal, incerto quanto ao tom, sem graça muitas vezes, baixinho. Para mim, para algumas pessoas a quem talvez comunique cheio de orgulho a abertura de portas, "umbiguista" com certeza e arrependendo-me na manhã seguinte. Talvez seja assim.

Mas, na manhã seguinte...

Porquê "usine" e não "atelier", fábrica e não oficina? Sarah Bernhardt, segundo Rivette e muito antes de Warhol, refere-se assim ao lugar onde o artista se produz a si mesmo. O teatro enquanto máquina construída a uma escala não-humana, povoada por uma multidão de operários, uns mais aristocratas do que outros.
A fábrica é o que do teatro os espectadores não vêem, daí a escuridão. São os bastidores, os camarins, os corredores, as catacumbas. A luz de qualquer modo é sempre artificial, o teatro é um mundo dentro do mundo onde nem sempre se sabe quando é dia e quando noite.
Na sala diante do palco a sociedade exibe-se, estratificada, da plateia aos camarotes e balcões, mas na sombra conspira-se e transpira-se, o trabalho é secreto, fabril e febril.
Mas estamos no fim do século XIX. E não é por esses dias que aparece outra fábrica, de sombras mas agora projectadas, a maquinaria à mostra e não escondida, exibindo-se como novidade e conquista da arte na era da reprodutibilidade técnica? Gorki chamou "mundo cinzento" a este teatro virado do avesso.

A maior parte das vezes, começava assim

"Fábrica sombria" será uma expressão de Sarah Bernhardt para se referir ao teatro como lugar onde a actriz "lapida os seus diamantes na penumbra". Aqui não vai haver de certeza diamantes, penumbra é provável que sim. As segundas aspas são citação já não da Bernhardt mas de um argumento de cinema chamado Phénix, escrito (e nunca filmado) por Jacques Rivette. Foi aí que encontrei a primeira citação e uso-a como título porque é suposto eu ter alguma coisa escrita sobre este guião daqui a um mês: a fábrica entra portanto agora (oficialmente) em laboração. Isto não quer dizer que desse trabalho se veja aqui alguma coisa; o que interessa é que o motor da escrita comece a rodar, mais ou menos secretamente, e pode ser que o blog sirva para ir dando uso ao teclado. Nada me garante que vá conseguir, e então o texto prometido, assim como o blog, não passarão de espectros, assombrações. Não é Phénix (é o que diz na capa do livro) um "filme fantasma"? Bu.