sábado, 28 de abril de 2007

Não me quites, pá!

Tive durante muito tempo na mensagem do telemóvel (até a TMN mo apagar) o primeiro verso da canção do Brel, como quem diz "não desligues". Sinto-me portanto habilitado para rir e chorar com a menção feita à dita canção no Ípsilon de ontem, na entrevista a Camané: não só o título e o autor estão mal escritos como "l'ombre de ton chien" aparece traduzido por "o ombro do teu cão"!!! Entregando-se entrevistador e entrevistado à exegese da expressão, gostava de ver a que píncaros interpretativos chegariam com "l'ombre de ton ombre" ("o ombro do teu ombro"?) e "l'ombre de ta main" ("o ombro da tua mão"?).
Remexendo na ferida, aqui vai a citação completa:
É das canções de amor mais desesperadas que já alguém escreveu: "Deixa-me ser (...) [preocupação filológica com a elipse] o ombro do teu cão"...
Ele queria ser o ombro do cão dela porque [suspense] queria era estar ao pé dela [ombro a ombro], não queria que ela o deixasse [como quem abandona o ombro amigo de um cão]. E nessa fase da canção existe o desespero [que leva a dizer coisas de que depois nos arrependemos]: nem que seja uma mosca à tua volta, [que pousasse n'] o ombro do teu cão, qualquer coisa [desde que não tenha sentido], mas que eu possa estar ao pé de ti [é isso].
Eu gosto muito do Camané e de quase tudo o que escreve o João Bonifácio (o entrevistador). E é verdade que o que eles dizem, se assim parece um exercício surrealista, faria todo o sentido se a tradução estivesse certa. Mas tal como saiu é tão hilariante quanto deprimente, e esta ficará no top 3, (s)ombreando com a legenda que diz "Vamos fazer uma torrada" antes de os copos tilintarem (nunca vi, será lenda urbana?) e com outra que vi na encenação (e tradução) de Carlos Afonso Pereira da peça Fausto Morreu de Mark Ravenhill, onde uma personagem anunciava a sua saída com um "Estou fora daqui". Quem me dera.

quinta-feira, 26 de abril de 2007

Alan Ball 1945-2007, Alan Ball 1957-

Quando o criador de Six Feet Under leu a manchete sobre a morte do futebolista inglês, temeu por momentos, antes de respirar de alívio, que o supremo argumentista o tivesse escolhido a ele para protagonizar o segmento inicial do episódio, até ao fundido a branco. Nesses instantes de pânico, teve ainda sangue frio para congeminar uma narração post-mortem, naturalmente em off, de modo a sair em americana beleza.

segunda-feira, 2 de abril de 2007

I humbly thank you, well, well, well

Não devo ser o único blogger que acha que acompanhar a evolução do Sitemeter e do Technorati é muitas vezes mais interessante do que a postagem propriamente dita. Se não fossem esses perniciosos violadores da navegação alheia, não poderia estar agora a agradecer a quem teve a gentileza de lincar esta incipiente manufactura. Depois do Tiago, da Mãe da Alice e da Vallera, obrigado ao Filipe Moura, ao Zé Mário, à Charlotte e ao Pedro Correia.

domingo, 1 de abril de 2007

Caruma

Não sou grande espectador de dança e não faço ideia se determinado vocabulário coreográfico é interessante, ou datado, ou original. Mas sou sensível ao pensamento quando o consigo ver. Lembro-me bem de uma peça do João Fiadeiro, vista na cave d'a Capital: chamava-se I'm Sitting in a Room Different From the One You Are In Now e era possível seguir todo o raciocínio do princípio ao fim, feito de gestos, sons, fita autocolante e fotocopiadora. Ou Corpo de Baile, de Miguel Pereira, que foi há menos tempo mas de que me lembro menos, com o vestir e o despir, o indivíduo e o grupo, as pessoas e as cadeiras.
Caruma
de Madalena Victorino é talvez um espectáculo mais emotivo do que estes dois, menos conceptual e irónico. Mas não deixa de haver nexos nítidos que se vão tecendo: a recorrência dos grupos de mulheres + rapaz (as mães com os filhos pequenos, mas entre elas um pai; as mulheres a tentar vestir o casaco aos rapazes, mas entre elas um homem; as bailarinas, mas um é um rapaz); ou os movimentos "expressionistas" do início, com os dedos dos pés e das mãos bem separados, a lembrar os ramos secos de árvores que surgem no fim. Eles dançam, andam a pé, de bicicleta e de patins, tocam, cantam e falam; eu normalmente preciso de ir pensando, e senão encontro um ponto de apoio no espectáculo perco-me depressa noutras cogitações. Só que aqui há ainda outras hipóteses: um momento de emoção pura como o das crianças que mal andam deixadas no centro do palco pelas mães; ou o simples prazer de ouvir uma história como a da "Maria dos Prazeres" e o seu cão, entre Gracia e o cemitério de Montjuic.