In the beginning God created the Heauen, and the Earth. And the earth was without forme, and voyd, and darknesse was vpon the face of the deepe: an the Spirit of God mooued vpon the face of the waters. (King James Bible, Gen. 1:1-2)
Durante séculos não ocorreu a nenhum cristão a ideia sacrílega de lhe alterar uma letra e esse respeito passou inevitavelmente para a vida profana. (Vasco Pulido Valente, Público, 21/03/08)
Encontrei aqui um fac-simile da King James Bible (KJV) de 1611. Não é preciso ir mais longe do que o segundo versículo para encontrar discrepâncias entre a grafia utilizada e a actual; mais: o próprio texto usa variantes ("Let there be light"e "Let there bee lights" nesta mesma primeira página do Génesis).
Isto para dizer que a crónica de hoje de Pulido Valente é um disparate pegado. Como é que se pode dizer, sem corar, que a KJV fixa a grafia inglesa? Que contribua para o estabelecimento de um dialecto inglês padrão não duvido, só que a ortografia é outra coisa. Nunca tinha lido a KJV com a grafia original, mas bastava-me ter olhado para as reproduções das primeiras edições de Shakespeare (o First Folio é de 1623) para ter a certeza de que a norma gráfica não era a maior preocupação do séc. XVII. Em Portugal como em Inglaterra, estas questões surgem no Iluminismo, altura em que se publicam gramáticas e dicionários (não necessariamente os primeiros, mas os mais influentes - e é o dicionário do Dr. Johnson de 1755 que mais contribui para a fixação da grafia britânica). Ao "durante séculos" de VPV deve acrescentar-se em rodapé "descontando o primeiro século e meio".
Mas não é só este anacronismo, sobre o qual toda a crónica se alicerça, que não bate certo: a própria ideia central de que o inglês "se escreve, com ligeiras variantes, da mesma maneira em metade do mundo", por oposição ao português, não resiste ao exame mais superficial. Já há uns tempos tinha linkado este artigo da Wikipédia sobre as diferenças gráficas entre o inglês britânico e o americano (cuja ortografia é fixada pelo Webster de 1828), onde se vê que são perfeitamente comparáveis às que separam o português europeu do brasileiro.
A partir daí a comparação dos cânones literários em português e inglês é apenas tonta (com a aberração que é chamar "nativista" a Guimarães Rosa), mais uma glosa do tema preferido de VPV, segundo o qual "os portugueses não prestam, os ingleses é que é" (e que normalmente tem graça). Mas acho que nunca como hoje me chocou tanto a torção da realidade em função desse juízo a priori. Ainda por cima quando o exemplo inglês é um óptimo argumento contra o erro científico que é este acordo ortográfico - ali nunca foram precisas uniformizações transatlânticas.
Pronto, já estou mais calmo.
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