quinta-feira, 27 de março de 2008

Kitano

- Gostas do Hana-Bi?
- É dum wannabe.

(lembrando-me de um post antigo)

Carpe diem

Falemos agora de cinema como deve ser. Tal como o Rui Tavares, achei imensa graça à tresleitura que José Manuel Fernandes fez anteontem do Clube dos Poetas Mortos, ainda por cima com uma argumentação muito duvidosa: 1. O professor Keating foi expulso do colégio de Welton; 2. Na escola portuguesa não há lugar para Keatings; 3. Só pode haver um Keating em colégios como o de Welton. Quer-me parecer que o Keating, para onde quer que vá, está tramado.
Mas queria chamar a atenção para um pormenor: JMF diz que "os métodos do professor acabaram por criar uma tensão de que resultou o suicídio de um dos seus alunos"; Rui Tavares fala do "filme em que um execrável colégio interno levava um dos seus alunos ao suicídio". Ora, nem o Rui nem JMF devem ter visto o filme mais de dez vezes, ao contrário de todas as pessoas nascidas entre 1976 e 1980. Cabe-me portanto informá-los de que a culpa não é nem do professor nem do colégio: é do pai, que não deixa o filho ser actor. Falta rigor na imprensa de referência.

Voilà 2

Caro Ivan,
Não sou eu que vou argumentar conta a "superioridade do português do Brasil": não por concordar ou discordar, a afirmação inversa é que me soa ridícula. É óbvio que estava só, como se costuma dizer, a embirrar, embora o sintagma "ótimo ator" me pareça claramente uma provocação - porque não, sei lá, "excelente intérprete"?
E acho que tenho algumas razões para esta minha embirração contra o acordo, como o facto por exemplo de se escrever "espetáculo" sem c e "espectador" com, perdendo-se não só a ligação etimológica entre as duas (como já acontece no português brasileiro) mas também a indicação gráfica para abrir o e em "espectáculo" (coisa de que, por causa das fonéticas respectivas, o português brasileiro não precisa e o europeu sim). Acho finalmente que é tudo uma perda de tempo e dinheiro (e as árvores, as árvores), sem uma base científica credível e sem ganhos evidentes para os leitores.

quarta-feira, 26 de março de 2008

Obrigado

A quem comentou o post do aniversário. Fiquei mesmo contente e não estava à espera. Pelas minhas contas só dois dos leitores do blog é que não disseram nada (não, um, o outro sou eu). Prometo então escrever mais 60 posts, só metade dos quais sobre o Rivette e apenas uma minúscula percentagem sobre o acordo ortográfico.

Voilà

Este é bem capaz de ser o primeiro post escrito em conformidade com o novo acordo ortográfico, que o novo Ministro da Cultura decidiu recentemente apoiar. Nada de surpreendente: se a ideia era "fazer mais com menos", porque não começar por deitar fora algumas letras que não servem para grande coisa?
Em apenas dois parágrafos temos "contrafação", "ótimo", "ator", "abstração", "atores". A sensação é estranha (e não duvido de que um dia se entranhe). Eis um texto com a sintaxe e semântica do português europeu cuja leitura é sobressaltada de vez em quando por uma gralha que não existe. São as mesmas palavras mas não bem as mesmas. Como as notas falsas de que o filme comentado trata? Seria demasiado fácil. Não, antes como nos filmes os mortos-vivos ou extraterrestres que andam no meio das pessoas normais e só se distinguem por um pequeno pormenor: não sangram, ou têm os olhos vermelhos, ou pele a mais atrás das orelhas... (O Žižek fala disto para explicar o objet petit a lacaniano, mas eu ainda não percebi nem isso agora vem ao caso.)
O engraçado é que o Ivan Nunes escreve "fato" em vez de "facto", embora a maior parte (?) dos falantes de português europeu pronuncie o c (como em "espectadores", que se escreve assim tanto cá como no Brasil). Trata-se portanto de uma palavra que em princípio ficaria na mesma, e este "em princípio" é um dos problemas deste acordo: para se fazer a revisão de um texto vai ser preciso perguntar ao autor como é que ele pronuncia determinadas palavras. A menos que o Ivan esteja a seguir a norma brasileira, onde "facto" se escreve e continuará a escrever "fato"... mas não, mais abaixo está "oxigénio" e não "oxigênio".
Enfim, como às vezes me calha corrigir textos alheios, já sei que vai sobrar para mim.

segunda-feira, 24 de março de 2008

La Belle Noiseuse


Esta forma de esvaziar os actores deve frequentemente revoltá-los, mas há um tempo para os escutar, outro para os fazer calar.
Jacques Rivette, "Carta sobre Rossellini", Cahiers du Cinéma, Abril 1955


Constance Dumas, na Bande des Quatre, diz que o teatro é uma série de provas/provações ("épreuves"). Assim o cinema visto no cinema: é inesquecível a experiência das quatro horas da Belle Noiseuse (ainda bem que não achei que ter visto em dvd no portátil bastava... Agora só volta a passar na sala pequena, o que não será bem a mesma coisa).
Se, como diz Alain Bergala, o Mépris de Godard é um remake de Viaggio in Italia, então a Belle Noiseuse é a versão de Rivette do filme de Rossellini, com a crise de dois casais em vez de um. E isto sem esquecer que entretanto houve o Mépris... Piccoli está nos dois filmes franceses para o demonstrar. Veja-se a semelhança de motivação para a ruptura do casal (Bardot/Piccoli num caso, Béart/Bursztein no outro): o sacrifício da mulher pelo artista enquanto jovem. Ou pense-se no tema do palimpsesto, as telas que se rasuram e sobrepõem como os filmes. Como diz Jane Birkin, referindo-se à segunda versão do quadro "La Belle Noiseuse", "substituiste a minha cara por um par de nádegas" - e não é o rabo de Bardot que em Godard toma o lugar do rosto da Bergman, se compararmos o início do Mépris com o da Viagem? Quanto ao Mediterrâneo dos dois primeiros filmes, Rivette troca-o pela floresta - é de resto Piccoli/Frenhofer quem compara o som do mar ao das árvores, primordial como a radiação fóssil que vem dos confins do universo.
Mas é entre Rivette e Rossellini que a relação é mais interessante: para a ver, basta acreditar que ela existe. Talvez começando por notar a influência de Matisse na pintura de Frenhofer/Bernard Dufour, Matisse que estava na cabeça de Rivette ao ver a Viagem em Itália. Ou pensando na cena de comédia que é a do regresso nocturno de George Sanders, vindo de Capri, à casa do tio Homer, com as luzes que se vão acendendo e apagando à medida que se atravessam as divisões: Piccoli repetir-lhe-á os gestos uma noite, mas, ao contrário de Sanders, acabará por ir dormir ao quarto de Jane Birkin.
No entanto, é o momento da revelação o que mais aproxima os dois filmes: a reacção de Ingrid Bergman em Pompeia ao casal surpreendido pelo vulcão é a mesma da de Emmanuelle Béart (ou de Jane Birkin) perante o quadro concluído - um estremecimento perante a verdade que o corpo esconde, uma verdade que é morte (Birkin desenha uma cruz nas costas da tela) ou, por outras palavras, reflexão sobre o cinema (a imagem é um sudário, diz Bazin).
Sim, a pintura está aqui em vez do cinema, como noutros casos o teatro; mas a relação do pintor com o seu modelo não é automaticamente, neste que é o menos rivettiano dos seus filmes, a de Rivette com Béart - o jogo de espelhos, ampliado pela duplicação dos casais, é mais subtil e perverso, e pode ficcionar também o par Rossellini/Bergman (ou Godard/Bardot, ou Godard/Karina...). La Belle Noiseuse, mais do que um remake, é um making of.

P.S.1: Ainda os títulos de filmes futuros. O livro para adolescentes que escreveu a personagem de Emmanuelle Béart chama-se Le Secret défense aux yeux d'or, muito antes de Rivette pensar em fazer o Secret Défense... Quanto aos "olhos de ouro", vem de La Fille aux yeux d'or, romance de Balzac que encerra a trilogia da Histoire des Treize (tendo Rivette aproveitado o prefácio para Out 1 e adaptado o segundo romance, La Duchesse de Langeais, para o seu último filme).
P.S.2: Ainda o Ágon. ZM, acreditas que a música do genérico do filme é mesmo a do ballet de Stravinsky de que falavas?

sexta-feira, 21 de março de 2008

Aniversário

Na passada quarta-feira este blog fez um ano. Deixei passar a data de propósito, a ver se alguém reparava, mas qual quê. Nem uma palavra, um link, um email. Isto depois de mais de 60 posts, o que dá uma média de, bom, de mais de 60 posts por ano.
Sem brincadeiras: obrigado aos que ainda se dão ao trabalho de passarem por aqui. São a alegria desta fábrica tantas vezes em greve.

VPV versus KJV

In the beginning God created the Heauen, and the Earth. And the earth was without forme, and voyd, and darknesse was vpon the face of the deepe: an the Spirit of God mooued vpon the face of the waters. (King James Bible, Gen. 1:1-2)

Durante séculos não ocorreu a nenhum cristão a ideia sacrílega de lhe alterar uma letra e esse respeito passou inevitavelmente para a vida profana.
(Vasco Pulido Valente, Público, 21/03/08)

Encontrei aqui um fac-simile da King James Bible (KJV) de 1611. Não é preciso ir mais longe do que o segundo versículo para encontrar discrepâncias entre a grafia utilizada e a actual; mais: o próprio texto usa variantes ("Let there be light"e "Let there bee lights" nesta mesma primeira página do Génesis).
Isto para dizer que a crónica de hoje de Pulido Valente é um disparate pegado. Como é que se pode dizer, sem corar, que a KJV fixa a grafia inglesa? Que contribua para o estabelecimento de um dialecto inglês padrão não duvido, só que a ortografia é outra coisa. Nunca tinha lido a KJV com a grafia original, mas bastava-me ter olhado para as reproduções das primeiras edições de Shakespeare (o First Folio é de 1623) para ter a certeza de que a norma gráfica não era a maior preocupação do séc. XVII. Em Portugal como em Inglaterra, estas questões surgem no Iluminismo, altura em que se publicam gramáticas e dicionários (não necessariamente os primeiros, mas os mais influentes - e é o dicionário do Dr. Johnson de 1755 que mais contribui para a fixação da grafia britânica). Ao "durante séculos" de VPV deve acrescentar-se em rodapé "descontando o primeiro século e meio".
Mas não é só este anacronismo, sobre o qual toda a crónica se alicerça, que não bate certo: a própria ideia central de que o inglês "se escreve, com ligeiras variantes, da mesma maneira em metade do mundo", por oposição ao português, não resiste ao exame mais superficial. Já há uns tempos tinha linkado este artigo da Wikipédia sobre as diferenças gráficas entre o inglês britânico e o americano (cuja ortografia é fixada pelo Webster de 1828), onde se vê que são perfeitamente comparáveis às que separam o português europeu do brasileiro.
A partir daí a comparação dos cânones literários em português e inglês é apenas tonta (com a aberração que é chamar "nativista" a Guimarães Rosa), mais uma glosa do tema preferido de VPV, segundo o qual "os portugueses não prestam, os ingleses é que é" (e que normalmente tem graça). Mas acho que nunca como hoje me chocou tanto a torção da realidade em função desse juízo a priori. Ainda por cima quando o exemplo inglês é um óptimo argumento contra o erro científico que é este acordo ortográfico - ali nunca foram precisas uniformizações transatlânticas.



Pronto, já estou mais calmo.

terça-feira, 18 de março de 2008

História de títulos

Não me digas uma coisa dessas, Alexandre. Já tinha toda uma teoria que girava em volta de o Secret Défense ser o único filme do Rivette em que o o título era dito pelas personagens. Até tinha a citação da entrevista "Le temps déborde" para me apoiar: "Todas as regras devem ser contraditas uma vez."
Sim, lembrava-me que se dizia "Belle Noiseuse" na Bande des Quatre, anunciando o próximo filme; e reparei ao vê-lo na Cinemateca que, no Duelle, se fala na árvore do "Noroït", o vento de noroeste que dá o título ao projecto seguinte. Claro que no Noroït nunca se fala no nome do vento, embora haja supostamente um tesouro na direcção nor-noroeste (o que remete para esta linhagem). No Duelle há, como em Ne touchez pas la hache, outra near miss, desta vez não por supressão mas por homofonia: junto à árvore do Noroït terá lugar um "duelo" (duel, e não duelle, que quer dizer "dual"). E também tenho ideia que no Va Savoir se diz "allez savoir"!
Enfim, para a minha teoria que cai "par terre", resta a consolação de tomar a citação do "Temps déborde" ela própria como uma regra: contradiz-se a regra do Renoir uma vez, e contradiz-se também uma vez a regra que diz que se deve contradizê-la.