quinta-feira, 6 de agosto de 2009

"Crítica" vem de "crise"

O recente pedido de desculpas do Público ao Belenenses, em editorial, por causa de uma crítica de música de João Bonifácio é um sintoma da menoridade a que a actividade crítica neste jornal se encontra reduzida. É também um precedente inquietante (basta ler as recomendações tipo-ERC do Provedor sobre o caso), que choca ainda por dar razão à boçalidade, essa sim insultuosa, do mundo do futebol contra o (bom) humor do crítico e porque traz a assinatura de Nuno Pacheco, num gesto que destoa do seu habitual equilíbrio e surpreende em quem também faz crítica musical.
Mas, como disse, este caso é um sintoma apenas. Outro, a que a distância não rouba exemplaridade: há um ano, os dois mais importantes suplementos culturais, o Ípsilon do Público e o Actual do Expresso, davam capa e várias páginas (espraiando-se glamorosamente em reportagens e entrevistas) ao filme O Sexo e a Cidade; mas no quarto dos fundos, no espaço reservado à crítica, o filme era recebido (nos dois casos) com bola preta. Um suplemento que ao saber desta opinião veemente dos seus colaboradores não põe por um segundo em causa o seu “critério jornalístico” vive um caso agudo de dupla personalidade, remetendo a crítica para um gueto onde incomode cada vez menos até que a personalidade dominante – a do marketing – ocupe por inteiro a consciência (nos filmes, quando isto acontece, já estamos no manicómio).
Na área do teatro, que por prazer e obrigação conheço melhor, o número de críticas mensais passou de seis para quatro: uma crítica por semana, 1,33 por mês para cada um dos críticos. O Festival de Almada teve apenas direito, este ano, a uma crítica e meia (mais uma se contarmos com o Demo do Teatro Praga, visto quando o Festival já tinha acabado há uma semana); os “Dias das Histórias (Im)prováveis”, do Maria Matos, só duas – e só dos espectáculos estrangeiros, no que é aliás um reflexo dos destaques mais ou menos deslumbrados do Ípsilon. É triste comparar esta parca colheita com a cobertura (diária mas nem por isso exaustiva) que o Libération fez de Avignon, ou que o Guardian costuma fazer de Edimburgo; ou que o próprio Público reserva a festivais de cinema como o Indie ou os Docs, embora quase só da competição (porque há prémios e o crítico pode ver confortavelmente em casa os dvds?). Fora dos festivais, e fora de Lisboa, a situação é ainda mais deprimente, com dezenas de espectáculos talvez importantes a passarem sem deixar um rasto, uma memória para além da que os espectadores guardarão para si durante uns dias ou uns anos.
Mas se a preservação da memória é uma função da crítica, a mais urgente é o discurso (em) público sobre os objectos artísticos. Mais raras, as críticas que por acaso saírem serão cada vez mais mal escritas, e é provável que também os espectáculos vão ficando piores. A culpa é nossa, ensina-nos Godard: “Se um espectador me diz: ‘O filme que vi é mau’, eu digo-lhe: ‘A culpa é tua, pois o que é que fizeste para que o diálogo fosse bom?’” Sabemos que o Público, como outros jornais do mundo inteiro, atravessa dificuldades financeiras. Mas ao diminuir o espaço e a frequência da crítica, ao desautorizá-la, os jornais perdem o que os distingue de outros meios de comunicação: o tempo e o espaço para reflectir, decifrar, discutir. A crítica como ainda (?) a conhecemos foi com os jornais que nasceu; e as “medidas de gestão” que a condenam é a sentença de morte dos jornais que simultânea e ironicamente assinam.
Não morreremos por causa disso. Como no final do Tio Vânia de Tchékhov “Vamos viver uma longa, longa série de dias e de noites. Vamos com paciência suportar as provações que a nossa sorte nos infligir. Havemos de trabalhar para os outros, hoje e quando formos velhos, sem pararmos nunca.” Jornalistas, actores, realizadores, tradutores, músicos, cenógrafos, já sem empresários beneméritos nem apoios do estado, faremos outras coisas durante o dia, para ganhar a vida; e à noite passamos ao underground, amadores todos, escrevendo em blogues, fazendo espectáculos em apartamentos, pegando em câmaras digitais. Ao menos não haverá cronistas na penúltima página a vociferar contra os subsídios. E o que hoje se faz de mais interessante em Nova Iorque, em Buenos Aires, não anda longe disto.
Mas enquanto ensaiamos esta clandestinidade futura, enquanto ainda podemos ocupar teatros, e dar concertos sem que os vizinhos se venham queixar, enquanto ainda há um resto de jornais e de crítica, podemos exigir: o jornal que eu quero ler tem críticas todos os dias – uma página inteira, sem contar com a publicidade; de teatro há-de haver uma página destas por semana, às vezes mais, outras menos; o suplemento também tem críticas, e não assobia para o lado na hora de decidir os destaques; os críticos serão ouvidos e respeitados, mas também eles criticados (embora não em editorial), para que escrevam mais e melhor, para que saibam mais e vejam e leiam mais; há-de haver um blogue de artes como no Guardian onde se escrevem ainda mais textos porque já não cabem no jornal em papel; e isto que se diz para a crítica serve também para a reportagem e para a opinião. Dizem que “crítica” vem de “crise”, portanto o melhor é aproveitar agora. Quando houver um jornal assim, aí pode acabar o dinheiro à vontade, que será um final em beleza. Eu dava-lhe quatro estrelas.

[Público, 06.08.09]