quarta-feira, 5 de novembro de 2008

Prop 8

Numa noite extraordinária, a péssima notícia foi a passagem da Proposition 8 na Califórnia, banindo os casamentos entre pessoas do mesmo sexo que, meses antes, tinham sido aprovados. Há mesmo qualquer coisa de trágico na possibilidade de o aumento da participação eleitoral, esmagadoramente pró-Obama, ter contribuído para este desfecho. E parece-me que o próprio Obama, embora tenha dito que votaria "Não", tem aqui responsabilidades, dada a sua posição contra os casamentos e pelas uniões civis homossexuais.
O que não percebo é uma frase como esta (em stereo) de Miguel Vale de Almeida: "Infelizmente pouco indica que a igualdade sexual seja uma das suas [de Obama] causas estruturantes, pelo menos por comparação com a sua oponente nas primárias." Não é caso único, mesmo em Portugal: Hillary foi bem sucedida na criação de uma imagem resolutamente pró-LGBT, embora tenha exactamente a mesma posição que Obama na questão do casamento e esteja ligada por afinidade a duas leis discriminatórias que Bill Clinton aprovou, o Don't Ask, Don't Tell e o Defense of Marriage Act (ambas, salvo erro, contestadas por Obama e não por Hillary). Se calhar tenho andado a ler demasiado Andrew Sullivan, mas sempre me pareceu que Obama era apesar de tudo o candidato mais pró-gay - basta pensar no discurso de ontem. É que as palavras contam.

Ufa



segunda-feira, 3 de novembro de 2008

Lipstick

527, 538, earmarks, pork-barrel, Roe v. Wade, litmus test, all of the above, beltway, drink the Kool-Aid, SCOTUS, swift-boat... Há na política americana todo um vocabulário que é preciso dominar, um jargão para iniciados feito de siglas, abreviaturas, reminiscências de campanhas passadas, metonímias, uma panóplia de que fazem parte todas as expressões sistematicamente mal traduzidas pelas legendas do West Wing. Nesta eleição, para além de se terem usado todas estas, houve algumas que cristalizaram à sua volta as posições em confronto, ganhando uma materialidade que as destaca da indiferenciação linguística: coisas aparentemente banais como to cling, bitter, preconditions ou o demonstrativo that one, coloquialismos como doggone, slogans como Yes We Can e Drill, Baby, Drill, personagens pitorescas como Joe Six-Pack e Joe the Plumber - e uma das mais curiosas, lipstick.
No discurso à convenção republicana, piscando o olho e cerrando o maxilar, Sarah Palin explicou que a diferença entre uma hockey mom (ela própria) e um pit bull era o bâton. E Obama, falando das políticas falhadas de Bush umas semanas depois, dizia que se podia pôr bâton num porco que não deixava por isso de ser um porco. Aberto este jardim zoológico, que podemos expandir se traduzirmos hockey mom por mãe-galinha, a campanha de McCain acusou Obama de sexismo, por ter chamado porca a Sarah Palin (com o argumento sherlock-holmesiano de que é a única candidata que usa bâton). Sentiu-se o desespero que havia em desencantar o tema do machismo, para atrair apoiantes de Hillary. Embora seja difícil perceber como é que alguém que se auto-define como um pit bull se pode sentir ofendido se lhe chamarem porco (mais uma contribuição: na equipa de básquete do liceu, Palin era conhecida como Barracuda), se quisermos levar a discussão a sério vemos que o que está em causa são as propriedades transfiguradoras do bâton: para Palin este funciona como o beijo da princesa que muda o sapo em príncipe, uma espécie de elixir mágico que opera a transformação de um cão de raça numa rainha dos subúrbios; já Obama (cá está o seu materialismo, certamente socialista) parece chamar os bois pelos nomes, o bâton deixa de funcionar como catalisador metafórico. Obama consegue matar a metáfora mostrando a sua semelhança com uma expressão idiomática imediatamente reconhecível (lipstick on a pig), tornando inofensivo o mais raivoso cão tropológico. Um automatismo da linguagem serve de antídoto e impede a metamorfose pela maquilhagem. Para além disso é uma boa linha de defesa contra a paranóia da campanha de McCain: como pode esta inócua expressão que todos conhecemos, e que o próprio John "straight talk" McCain utilizou, ser uma alusão à anedota do pit bull? Miragens, sobreinterpretações.
Mas numa entrevista com David Letterman, resguardado pelo salvo-conduto do late-night, Obama arriscou um pouco mais: se ele estivesse a falar de Sarah Palin, que não estava, então o porco seria não a Palin mas as políticas falhadas de Bush, e Sarah o bâton que as não consegue disfarçar. Esta sofisticação e agilidade retóricas, onde uma dupla e muito mais criativa metáfora (ironicamente negada e blindada por uma expressão idiomática) mina o funcionamento da metáfora adversária, são uma demonstração inequívoca da superioridade de Obama face à equipa de McCain, que queria fazer passar cosmética por magia. O grande orador serve-se do straight talk para desmontar a oratória dos straight talkers. Quem é que não havia de querer um presidente assim? GObama!