segunda-feira, 29 de novembro de 2010

Elogio da terceira coisa

Jacques Rancière
O Espectador Emancipado
Orfeu Negro, 2010,
trad. José Miranda Justo,
192 págs.

Conferência de 2004, “O Espectador Emancipado” era um segredo mal guardado das artes performativas: foi anexo de emails, pretexto de debates, epígrafe de programas. Numa área onde a produção de teoria é escassa, este é um texto central – e o seu maior contributo é o de desmontar a ideia de comunidade como a priori do teatro. Para Jacques Rancière, a especificidade que nasceria da co-presença de actores e espectadores, tentando ingenuamente colmatar a separação que o teatro pressupõe, deve ser substituída por uma pluralidade de traduções (assentes na “igualdade das inteligências”) de uma “terceira coisa”, o espectáculo.
A emancipação do espectador seria assim não o anular de uma separação, o restabelecimento de uma união perdida (a ideia marxista de alienação) mas sim, como se diz no segundo texto deste livro (“As desventuras do pensamento crítico”), “uma experiência nova de vida e de capacidades individuais”. Numa época dominada pelo consenso, as “cenas de dissentimento” permitem uma rotura, uma redistribuição dos papéis atribuídos por uma “partilha policial do sensível”. O dissentimento é o ponto onde arte e política se encontram: se “a política começa quando há rotura na distribuição dos espaços e das competências”, a arte faz-se no “conflito de vários regimes de sensorialidade”. O regime representativo estabelecia uma continuidade entre a obra e a sua interpretação, e entre esta e o seu efeito ético; mas o regime estético que surge no século XVIII opera uma suspensão, uma desconexão destes laços entre ver, pensar e agir. É por isso que a antecipação dos efeitos das obras de arte é a maior armadilha em que pode cair uma arte política: os intervalos abertos pelas obras no regime estético são micropolíticas do sensível, mas os seus efeitos devem permanecer imprevisíveis. É um d’ “Os paradoxos da arte política”, o terceiro ensaio deste livro.
“A imagem intolerável” contribui para o debate em volta das fotografias de Auschwitz estudadas por Didi-Huberman. Contra os que invocaram a irrepresentabilidade da Shoah, Rancière desmantela a oposição entre palavra e imagem, testemunho e prova. E em “A imagem pensativa” procura descrever a pensatividade como a presença indecidível de várias “funções-imagens” na mesma superfície.
A tradução rigorosa de José Miranda Justo assegura felizmente o “valor de uso” deste livro fundamental, de argumentação límpida e conclusões produtivas. Mas é pena que a edição portuguesa opte por dar página própria às fotos ao alto, em vez de provocar – num livro feito de montagens e como queria Walter Benjamin – o confronto entre texto e imagem.

[Expresso-Atual, 27.11.10]

sábado, 6 de fevereiro de 2010

Viva a nouvelle critique

O Público inventou a nova crítica de cinema: Invictus tem direito a uma página inteira no P2 (acabaram-se as queixas sobre a falta de espaço para a crítica) e os autores concluem inequivocamente que "uma boa história, óptimos actores e um realizador com provas dadas" resultam num filme que "acabou por saber a pouco". Luís Miguel Oliveira, Mário Jorge Torres, arrumem as botas e os teclados. Não há mais nada que um espectador precise de saber antes de subir as escadas rolantes que vão do parque de estacionamento à bilheteira. É verdade que faltou a classificação de zero a cinco, mas não é difícil lá chegar: um carro de 2005 num filme que se passa em 1995, umas jogadas de râguebi inverosímeis e um envenenamento dos All Blacks que a intriga não contempla chegam para descontar três pontos, e um algoritmo simples diz-nos que este é um filme de duas estrelas (e acabam-se as hesitações). Adeus comentários histéricos no Ípsilon online, até à vista acusações de elitismo, finalmente uma crítica de cinema justa, objectiva, próxima do espectador. Mal posso esperar para ver o mesmo método infalível aplicado a uma encenação de Shakespeare, a um romance de Bolaño, a uma canção de Guillul. Deve ser por isto que não sai uma crítica de teatro há duas semanas: andam a contar erros, a comparar notas, a elaborar gráficos. Hurrah.

quinta-feira, 6 de agosto de 2009

"Crítica" vem de "crise"

O recente pedido de desculpas do Público ao Belenenses, em editorial, por causa de uma crítica de música de João Bonifácio é um sintoma da menoridade a que a actividade crítica neste jornal se encontra reduzida. É também um precedente inquietante (basta ler as recomendações tipo-ERC do Provedor sobre o caso), que choca ainda por dar razão à boçalidade, essa sim insultuosa, do mundo do futebol contra o (bom) humor do crítico e porque traz a assinatura de Nuno Pacheco, num gesto que destoa do seu habitual equilíbrio e surpreende em quem também faz crítica musical.
Mas, como disse, este caso é um sintoma apenas. Outro, a que a distância não rouba exemplaridade: há um ano, os dois mais importantes suplementos culturais, o Ípsilon do Público e o Actual do Expresso, davam capa e várias páginas (espraiando-se glamorosamente em reportagens e entrevistas) ao filme O Sexo e a Cidade; mas no quarto dos fundos, no espaço reservado à crítica, o filme era recebido (nos dois casos) com bola preta. Um suplemento que ao saber desta opinião veemente dos seus colaboradores não põe por um segundo em causa o seu “critério jornalístico” vive um caso agudo de dupla personalidade, remetendo a crítica para um gueto onde incomode cada vez menos até que a personalidade dominante – a do marketing – ocupe por inteiro a consciência (nos filmes, quando isto acontece, já estamos no manicómio).
Na área do teatro, que por prazer e obrigação conheço melhor, o número de críticas mensais passou de seis para quatro: uma crítica por semana, 1,33 por mês para cada um dos críticos. O Festival de Almada teve apenas direito, este ano, a uma crítica e meia (mais uma se contarmos com o Demo do Teatro Praga, visto quando o Festival já tinha acabado há uma semana); os “Dias das Histórias (Im)prováveis”, do Maria Matos, só duas – e só dos espectáculos estrangeiros, no que é aliás um reflexo dos destaques mais ou menos deslumbrados do Ípsilon. É triste comparar esta parca colheita com a cobertura (diária mas nem por isso exaustiva) que o Libération fez de Avignon, ou que o Guardian costuma fazer de Edimburgo; ou que o próprio Público reserva a festivais de cinema como o Indie ou os Docs, embora quase só da competição (porque há prémios e o crítico pode ver confortavelmente em casa os dvds?). Fora dos festivais, e fora de Lisboa, a situação é ainda mais deprimente, com dezenas de espectáculos talvez importantes a passarem sem deixar um rasto, uma memória para além da que os espectadores guardarão para si durante uns dias ou uns anos.
Mas se a preservação da memória é uma função da crítica, a mais urgente é o discurso (em) público sobre os objectos artísticos. Mais raras, as críticas que por acaso saírem serão cada vez mais mal escritas, e é provável que também os espectáculos vão ficando piores. A culpa é nossa, ensina-nos Godard: “Se um espectador me diz: ‘O filme que vi é mau’, eu digo-lhe: ‘A culpa é tua, pois o que é que fizeste para que o diálogo fosse bom?’” Sabemos que o Público, como outros jornais do mundo inteiro, atravessa dificuldades financeiras. Mas ao diminuir o espaço e a frequência da crítica, ao desautorizá-la, os jornais perdem o que os distingue de outros meios de comunicação: o tempo e o espaço para reflectir, decifrar, discutir. A crítica como ainda (?) a conhecemos foi com os jornais que nasceu; e as “medidas de gestão” que a condenam é a sentença de morte dos jornais que simultânea e ironicamente assinam.
Não morreremos por causa disso. Como no final do Tio Vânia de Tchékhov “Vamos viver uma longa, longa série de dias e de noites. Vamos com paciência suportar as provações que a nossa sorte nos infligir. Havemos de trabalhar para os outros, hoje e quando formos velhos, sem pararmos nunca.” Jornalistas, actores, realizadores, tradutores, músicos, cenógrafos, já sem empresários beneméritos nem apoios do estado, faremos outras coisas durante o dia, para ganhar a vida; e à noite passamos ao underground, amadores todos, escrevendo em blogues, fazendo espectáculos em apartamentos, pegando em câmaras digitais. Ao menos não haverá cronistas na penúltima página a vociferar contra os subsídios. E o que hoje se faz de mais interessante em Nova Iorque, em Buenos Aires, não anda longe disto.
Mas enquanto ensaiamos esta clandestinidade futura, enquanto ainda podemos ocupar teatros, e dar concertos sem que os vizinhos se venham queixar, enquanto ainda há um resto de jornais e de crítica, podemos exigir: o jornal que eu quero ler tem críticas todos os dias – uma página inteira, sem contar com a publicidade; de teatro há-de haver uma página destas por semana, às vezes mais, outras menos; o suplemento também tem críticas, e não assobia para o lado na hora de decidir os destaques; os críticos serão ouvidos e respeitados, mas também eles criticados (embora não em editorial), para que escrevam mais e melhor, para que saibam mais e vejam e leiam mais; há-de haver um blogue de artes como no Guardian onde se escrevem ainda mais textos porque já não cabem no jornal em papel; e isto que se diz para a crítica serve também para a reportagem e para a opinião. Dizem que “crítica” vem de “crise”, portanto o melhor é aproveitar agora. Quando houver um jornal assim, aí pode acabar o dinheiro à vontade, que será um final em beleza. Eu dava-lhe quatro estrelas.

[Público, 06.08.09]

quinta-feira, 25 de junho de 2009

Poemas e filmes reloaded

Não resisti a ir verificar, que a minha presunção não é tanta. E fui obviamente destemido, não tinha estaleca para tanto: se acertasse em todos os pormenores seria chato, um erro estaria bem, dois já é exagero. Pois pequei duplamente, uma das vezes por omissão, ambas na Comédia de Deus, dos três filmes o que vi há mais tempo. É que o soneto de Camões é primeiro dito por JCM em off, com Rosarinho ao espelho e só depois lido por Joaninha; e não na cornucópia, o que seria demasiado retórico na junção do sublime e do abjeccionista (e "tudo o que é demais cheira mal"), mas na cena seguinte, numa mais prosaica retrete. Aqui ficam os stills. Quanto a Robert Browning, não sei se é citado, mas a melhor referência que lhe é feita tem de ser a do Pierrot le fou: "un poète qui s'appelle revolver."




Filmes com poemas dentro

Aproveito que esta lista ganhou novo alento aqui e aqui para responder ao desafio:
- Primeiro lembrando que o soneto "Um mover d'olhos brando e piedoso" aparece em dois filmes do César Monteiro, alimentando assim a quota dos filmes portugueses: a primeira vez nos Sapatos de Defunto (com o Luís Miguel Cintra dobrado pelo próprio João César a dizê-lo à Paula Bobone num café a dar para o Campo Grande) e a segunda na Comédia de Deus (quem o lê é a miúda - Joaninha? - sentada na cornucópia de ovos).
- Depois acrescentando um Rivette: em L'Amour par terre, André Dussolier cita um excerto do poema de Verlaine do mesmo nome a Geraldine Chaplin, perante uma estátua de Cupido desfeita no chão.

P.S. Como não fui verificar nada disto é provável que um ou vários pormenores estejam errados. Se estiverem não faz mal, chama-se a isto "to pull a Bénard da Costa" e é a minha homenagem.

terça-feira, 16 de junho de 2009

Europa

Agora que é oficial: Parabéns, Rui!
Desde que instalei o Google Reader que não fazia tantos refreshes obsessivos à espera de resultados.
Não esquecer de pôr na mala: roupa quente, boas ideias e algumas consoantes mudas!

Irão

sexta-feira, 6 de março de 2009

quinta-feira, 5 de março de 2009

Alas, poor Wallace

Continuo a tentar perceber como foi possível aquelas duas frases vindas do Inimigo Público entrarem na notícia sobre o romance inacabado de Wallace. As "notícias" do IP partem de uma dupla verosimilhança:
1) "se não aconteceu, podia ter acontecido": a base para a criação das notícias falsas são factos que o leitor já é suposto conhecer; joga-se portanto no campo dos possíveis, levados embora a um extremo que normalmente lhes denuncia a falsidade (e as torna cómicas);
2) são escritas como as outras notícias, usam o mesmo vocabulário, o mesmo estilo, a mesma distribuição convencional da informação.
A uma leitura apressada e descontextualizada (fora do IP, talvez mesmo no Bibliotecário de Babel que a citou), talvez não espante portanto demasiado que o texto de Vítor Elias sobre o suicídio de Wallace parecesse a Sérgio C. Andrade uma fonte legítima: parecia uma notícia, cheirava a notícia, tinha de ser uma notícia.
Mas acho que há qualquer coisa aqui que continua a perturbar, que ultrapassa o riso ou o escândalo perante o jornalista que cometeu um erro (acontece a todos). Aristóteles preferia para a tragédia o verosímil ao verdadeiro: mais valia a mentira verosímil do que a verdade inverosímil. E o que me apetece concluir é que a mesma tentação espreita as notícias - não as do Inimigo Público, todas as notícias. A piada do IP entra na notícia do P2 porque a sua verosimilhança é irresistível, aqueles pormenores encaixam tão perfeitamente na história da vida de David Foster Wallace que têm de ser verdade. São aliás tão "exemplares" que hão-de fechar a notícia em grande estilo. O texto do IP ainda estende a Sérgio C. Andrade uma tábua de salvação: um bilhete de suicídio de 300 páginas, mesmo para quem escreveu romances tão compridos? saltar de cima de um livro em vez de usar um banco? Mas a cegueira do jornalista (a sua hybris) não o deixa olhar para trás. Aceita as 300 páginas e treslê a presença do livro, domesticando-a: o livro deixa de ser o banco para passar a estar em cima do banco, mantendo-se a narrativa psicológica do bloqueio do escritor que não sabia como continuar depois do grande romance (Bastava ter lido o artigo da New Yorker até ao fim para saber que o que havia era uma cadeira, e que o bilhete tinha duas páginas.)
Tudo isto é muito mórbido e triste. Não vale a pena pessoalizar demasiado o caso, parece-me acima de tudo um sintoma. Não do estado do Público ou do jornalismo português, mas do poder que têm as formas fechadas e arrumadas, com aristotélicos princípio, meio e fim, mesmo para essa escrita por definição inacabada e todos os dias recomeçada que é a da imprensa. Nada que não soubéssemos, afinal. Aqui, o jornalista escolheu a coerência da sua pequenina narrativa de 3000 caracteres, escrita a partir de uma leitura apressada (com mais atenção perceberia que a própria New Yorker, tal como a Harper's Bazaar, já tinham publicado capítulos do romance inédito), contra a complexidade do real, essa coisa que escapa por entre as mãos e que é tão difícil de enfiar em meia página de jornal. Terrível tentação, que transformou uma vida numa caricatura e uma morte numa anedota.


[Update: no site do Ípsilon já lá não está a frase sobre as 300 páginas, mas continua a do Infinite Jest em cima do banco. Saiu o mais obviamente excessivo, o que havia de grotesco no texto do IP; ficou o "pormenor significativo" deste psicologismo de pacotilha. Parece que a protagonista do primeiro romance de DFW desconfia que é uma personagem de romance; aqui, DFW foi transformado na personagem de uma notícia mal feita, o que é bem pior.]

terça-feira, 3 de março de 2009

O Público hoje está espectacular

No P2, no texto (com chamada de capa) sobre o fabrico de queijo da Serra kosher escreve-se isto:
E aquilo que em Israel é visto como o apelo das origens ou a procura do reencontro com as suas raízes ancestrais, para José Braz parece ter surgido apenas como uma oportunidade de incremento da facturação. Será essa, porventura, a mais firme revelação da sua costela judaica [...]
Será esta, porventura, uma piada anti-semita?
Mas o melhor é quando as piadas, para além de serem más, nem sequer sabem que são piadas. No artigo sobre o romance inédito de David Foster Wallace (também com chamada de capa) dá-se como boa uma notícia do Inimigo Público (!) que o Zé Mário tinha referido na altura, e que serve de fonte para as últimas duas frases do texto:
No dia 12 de Setembro de 2008, enforcou-se na sua casa, saltando de um banco em cima do qual tinha colocado um exemplar de Infinite Jest. Na secretária ao lado, segundo o relato de Karen Green, tinha deixado um "bilhete" para justificar o suicídio, com... 300 páginas.
Really?

terça-feira, 27 de janeiro de 2009

Fora de Serviço

Comigo não foi preciso esperar uns dias. Quando vi o espectáculo anterior dos ERS no Teatro Nacional de Bruxelas, uma voz anunciava qualquer coisa como: "GATZ, pelo Elevator Repair Service, vai começar dentro de 5 minutos no segundo andar. Pedimos aos espectadores para utilizarem as escadas, já que o elevador está avariado."

quinta-feira, 1 de janeiro de 2009

Ano novo

Lido no enterro de Pinter, tão bem descrito aqui.
Para o Olímpio (já passou um ano). E para alguns mais.
What we call the beginning is often the end
And to make an end is to make a beginning.
The end is where we start from. And every phrase
And sentence that is right (where every word is at home,
Taking its place to support the others,
The word neither diffident nor ostentatious,
An easy commerce of the old and the new,
The common word exact without vulgarity,
The formal word precise but not pedantic,
The complete consort dancing together)
Every phrase and every sentence is an end and a beginning,
Every poem an epitaph. And any action
Is a step to the block, to the fire, down the sea's throat
Or to an illegible stone: and that is where we start.
We die with the dying:
See, they depart, and we go with them.
We are born with the dead:
See, they return, and bring us with them.
The moment of the rose and the moment of the yew-tree
Are of equal duration. A people without history
Is not redeemed from time, for history is a pattern
Of timeless moments. So, while the light fails
On a winter's afternoon, in a secluded chapel
History is now and England.
T. S. Eliot, "Little Gidding", Four Quartets

quarta-feira, 31 de dezembro de 2008

Prémios da vida paralela 2008

Ainda vai muito a tempo (faltam algumas horas) este singelo, provisório e esburacado balanço de blogo-coisas.
  • La Bande des Quatre, e não só por causa do Rivette
  • Bola d'Ouro: a flash interview a James Joyce, what else?
  • Plano-sequência, ex-aequo: aqui sobre Pavese, ali sobre Aquele Querido Mês de Agosto (a que eu gosto de chamar só o Querido, em homenagem ao programa da SIC Mulher)
  • Qual Babel? O Babel, este, o imprescindível
  • Não é por ser meu primo, ou the truth is out there
  • Algumas ausências da lista de links, descobertas antigas ou recentes, explicáveis apenas pela minha preguiça e pela obsessão compulsiva que me faz clicar repetidamente no mesmo blog onde já vi que não havia posts novos em vez de me aventurar para lá do terreno conhecido

terça-feira, 30 de dezembro de 2008

Pinter 3

Uma nota final. Num texto de 2000 para a Abril em Maio, depois de comparar a produção cultural à produção de manteiga ("uma imagem de mau-gosto"), Jorge Silva Melo dizia: "um esquerdista não é suposto ter boas imagens, antes pelo contrário é suposto ser grosseiro". Esta era a vantagem do Pinter activista e militante (que também se lê nos poemas de Guerra): a fúria imprecatória com que chamava as coisas pelos nomes, sem subtilezas. Não será a única forma de participação política, mas faz falta e é exposta com lapidar clareza quando olha para uma afirmação de 1958
Não há distinções rígidas entre o que é real e o que é irreal, nem entre o que é verdadeiro e o que é falso. Uma coisa não é necessariamente ou verdadeira ou falsa; pode ser simultaneamente verdadeira e falsa.
desta maneira
Acredito que estas asserções ainda fazem sentido e ainda se aplicam à exploração da realidade através da arte. Portanto enquanto escritor defendo-as, mas enquanto cidadão não posso. Como cidadão tenho de perguntar: O que é verdadeiro? O que é falso?
É esta nitidez de pensamento que lhe permite por exemplo dizer, num discurso contra a política externa dos Estados Unidos e a Grã Bretanha, e quase três anos antes das bombas no metro de Londres, "o Primeiro Ministro não anda de metro". Demagógico, panfletário? Com certeza.
A propósito: numa altura de pesadelos recorrentes, em que Santana Lopes decide voltar a candidatar-se à Câmara de Lisboa, vale a pena lembrar a cartinha que Pinter lhe escreveu a propósito do fecho d'a Capital, que qualifica de "shocking" e "inexplicable" - adjectivos que se adequam na perfeição à recandidatura de PSL.

Pinter 2

Pinter é um daqueles escritores em quem é fácil apontar fases sem errar demasiado: há o teatro da ameaça (Feliz Aniversário), o da memória (Há Tanto Tempo) e o político (Língua de Montanha). Estabelecidos os períodos cronologicamente convém dar início à releitura e perceber o que havia já de político nas primeiras peças; ou como um aparente divertimento como O Amante se transfigura à luz das Traições. Por isso foi tão importante o ciclo que os Artistas Unidos dedicaram ao autor entre 2001 e 2003 (antes do Nobel!). E fazer modestamente parte desse trabalho (traduzindo, revendo, conversando, transcrevendo, editando) foi importante para mim. Foi com O Encarregado, por exemplo, que percebi como a tradução de teatro tem que ver com o espaço, não são só letras num ecrã ou num papel: "that" pode ser "isso" ou "aquilo", e para saber qual é preciso saber onde é que estão os actores. E Pinter é talvez o autor que melhor domina o seu ofício, tudo bate certo, os tempos, as deslocações, os adereços.
Por isto foi o único Nobel com que fiquei mesmo contente (Saramago who?). Em Junho de 2005, ainda antes do dito (mas já depois de eu sair dos AU), o espectáculo Conferência de Imprensa e Outras Aldrabices - com novos textos breves de autores como Enda Walsh, Jon Fosse, José Maria Vieira Mendes, Juan Mayorga, Spiro Scimone e Miguel Castro Caldas, entre outros, tendo por mote um sketch de Pinter - foi uma das mais fortes e originais homenagens que se fizeram ao autor, e isto pensando em termos internacionais. [Razão portanto para lembrar a forma infame como os resultados financeiros do espectáculo foram utilizados pelo Ministério da Cultura para demitir um director do Teatro Nacional.]
A verdade é que, como escreveu Jorge Silva Melo no Público, a influência de Pinter se faz sentir em muitos dos melhores dramaturgos que surgiram nas últimas décadas, de Sarah Kane a Scimone, Fosse e Crimp. E isso vai durar. A última prova que vi foi na ópera Outro Fim, de Pinho Vargas/Vieira Mendes. A didascália inicial diz "Talvez três espaços que se possam ver em simultâneo. Casa de Irmão e Cunhada, casa de Mulher e Mãe, e entre estes dois o café onde as restantes cenas acontecem." Como não ver neste espaço tripartido, que concilia público e privado, uma reminiscência daquilo que Pinter propõe para A Colecção, com uma cabine telefónica ladeada pelas casas de Harry e James? A crítica de Cristina Fernandes a Outro Fim, ao sugerir um arranjo "em patamares", passa ao lado de uma ligação (inconsciente?) que, na minha memória, as cenografias dos espectáculos de Artur Ramos e André e. Teodósio só vêm reforçar. Que maior curto-circuito no teatro português poderíamos imaginar? É a Pinter que temos de agradecer.

Pinter 1

O excerto abaixo é aquele de que me lembro logo quando penso na peça que traduzi para o espectáculo dos Artistas Unidos e para a edição da Relógio d'Água. Talvez porque põe o problema do título do texto, uma das dificuldades com que um tradutor de Pinter muitas vezes se confronta. Como transpor The Dumb-Waiter, ou Old Times, ou Ashes to Ashes? The Caretaker já foi O Porteiro em português (e não está errado, apesar de em inglês também haver "porter" e "doorman"), mas é Le Gardien em francês, El Cuidador em espanhol, no Brasil O Zelador (foi a minha primeira hipótese) - tudo substantivos que denotam uma função mas a que se associa ainda um verbo que é importante para peça (guardar, cuidar, zelar: "take care"), e isso "porteiro" não dá. A vantagem de "encarregado" está precisamente neste excerto: é um termo flexível (permite o verbo) e vago (encarregado de quê?), como vaga é a proposta de emprego que primeiro Aston e depois Mick fazem a Davies. É muito português, um cargo tão importante na aparência quanto vazio. (Quem pensou nele primeiro? Já não me lembro.)
Esse vazio é o que mais se vê nesta troca. Há três das famosas "pausas de Pinter", mas são muitas mais as hesitações, os becos sem saída. A linguagem revela-se como coisa sem fundo, sem referente, no exacto momento em que se diz "é aí que eu quero chegar" (ou "exactamente", ou "tá-me a compreender"). Tudo é fórmula, automatismo, e a compensação disso através de termos extremamente concretos (campainhas de latão, uma vassoura) só contribui para reforçar o sem-sentido (e o humor). Não há aqui o clima de ameaça que faz a assinatura de Pinter, mas isto também é pinteriano: a angústia perante o lixo abissal da linguagem.
Tudo isto é tão palpável que dói, na cena tal como a filmou Clive Donner em 1963. No YouTube só encontrei outro excerto, com os geniais Alan Bates e Donald Pleasence (e aí sim, temos o Pinter da ameaça em toda a sua glória, tão cómico quanto inquietante). Mas Robert Shaw, que faz de Aston e portanto não se vê aqui, rouba o filme. (É uma peça de actores: dependendo do elenco, torna-se muito facilmente a peça de Mick, ou a de Aston, ou a de Davies).

sexta-feira, 26 de dezembro de 2008

É aí que eu quero chegar

Aston Você podia ser… o encarregado disto, se quisesse.
Davies O quê?
Aston Podia… tomar conta do sítio, se quisesse… sabe, as escadas e o patamar, os degraus da entrada, ficar de olho nisso. Arear as campainhas.
Davies Campainhas?
Aston Vou colocar algumas, lá em baixo, junto à porta da rua. Latão.
Davies Encarregado, hã?
Aston Sim.
Davies Bom, eu… eu nunca me encarreguei assim dum sítio, sabe… quero eu dizer… nunca… o que eu quero dizer é que… inda nunca fui encarregado.
Pausa.
Aston O que é que acha de ser, então?
Davies Bom, admito… Bem, ia ter de saber… sabe…
Aston Que tipo de…
Davies Pois, que tipo de… sabe…
Pausa.
Aston Bom, quer dizer…
Davies Quer dizer, ia ter de… ia ter de…
Aston Bom, eu podia dizer-lhe…
Davies É… é isso… percebe… tá-me a compreender?
Aston Quando chegar a altura…
Davies Quer dizer, é aí que eu quero chegar, percebe…
Aston Mais ou menos exactamente o que é que…
Davies Percebe, o que eu quero dizer… onde eu quero chegar é… quer dizer, que tipo de tarefas…
Pausa.
Aston Bom, há coisas como as escadas… e as… as campainhas…
Davies Mas ia ser coisa para… não ia… ia ser coisa para uma vassoura… não é?
Harold Pinter, O Encarregado (The Caretaker)

domingo, 7 de dezembro de 2008

Walshómetro

Lido o que se diz sobre Hunger no Ípsilon e no Actual deste fim-de-semana (onde se destacam os belos textos de Luís Miguel Oliveira e de Óscar Faria) podem-se contabilizar exactamente zero referências ao contributo do co-argumentista Enda Walsh - ainda bem, de contrário lá se ia a minha teoria. Quem chega mais perto, guinando no último cruzamento possível, é Óscar Faria, que chama a atenção para um desejo impossível de McQueen: ter Beckett como argumentista. A verdade é que entre os vivos, e na categoria "dramaturgo irlandês", não lhe podia ter saído na rifa ninguém melhor que Enda Walsh (é aliás curiosa a vontade de trabalhar com um dramaturgo e não com um argumentista).
Quase todos os textos reparam e bem na cena da conversa entre Sands e o padre. Mas vale talvez a pena corrigir o seguinte: embora só tenha visto o filme uma vez, posso garantir que, ao contrário do que escreve José Marmeleira no Ípsilon, essa conversa não é "filmada num único take de 20 minutos". Há de facto um longo plano fixo de conjunto, mas a partir de certa altura (julgo que quando Sands começa a contar a história de infância com o potro moribundo) a découpage passa a ser feita em campo-contracampo, com planos aliás bastante apertados. Porque é que isto é importante? Acho que há qualquer coisa de pragmatismo inglês nesta procura de "sujar" com um pouco de bom-senso uma decisão formal arriscada: quando a psicologia exige, o que é que pode ser melhor que um grande-plano?

quinta-feira, 4 de dezembro de 2008

Um blog sempre em cima do acontecimento

Não fazia ideia que Hunger ia estrear agora, o meu objectivo era escrever com imenso atraso um post que estava pensado desde os Docs. Que procrastinar pode ser uma forma de antecipação, eis uma lição que espero não levar demasiado a sério. O que importa é que assim somos mais a ver e a falar sobre o filme. É ver como o Luís ilumina a conversa entre Sands e o padre ao lê-la à luz do prazer - o prazer do tabaco, mas já agora também o da conversa humana, franca, irónica e combativa, num filme onde o verdadeiro adversário é uma voz (a de Thatcher) que não tem corpo - e Sands ganha ao perder o seu.
Quando disse que os críticos tinham omitido o Enda Walsh não estava só a pensar na importância do argumento, embora ache que esse seja um dos pontos fortes do filme: o modo por exemplo como esse plano fixo da conversa divide estruturalmente o filme entre a abjecção palpável do "dirty protest" e a abstracção a tender para o incorpóreo da greve da fome; o modo como só chegamos a Bobby Sands em plena e brutal acção, depois de acompanhar primeiro um homem que mergulha as mãos no lavatório e depois um prisioneiro recém-chegado, numa gestão da informação (isto é, da narrativa) que espreme tudo o que pode de cada pormenor, mostrando sem dizer, fazendo fé na curiosidade do espectador. Sim, não é, na sua rarefacção, um filme "sobre", mas não deixa por isso de ser menos político.
O que me pareceu mais digno de nota foi detectar os efeitos da assinatura de Walsh para lá do argumento: a materialidade táctil, a clausura como destino voluntário. Não para pôr em causa a autoria/autoridade de McQueen, mas para generalizar um pouco a política dos autores - nada de muito novo, mas talvez importante neste caso. E já agora: não terá o actor que interpreta Bobby Sands, Michael Fassbender, algo a reivindicar em matéria de direitos de autor, ele próprio dono do seu emagrecimento, body artist, "artista da fome"? Suspeito que estamos aqui além (ou aquém) do Method Acting.

Mon beau souci

Sem o dvd à mão (e com o natal a aproximar-se talvez valha a pena deixar aqui a indicação subtil) nem pude confirmar se o último plano de Ne touchez pas la hache era aquele que eu pensava. O corte abrupto (à machadada) parece estar ali para não dar a Montriveau a paz da contemplação - nem a nós. Gosto muito que num cinema (o de Rivette) onde o que normalmente se preza é a arte da mise en scène tenhas destacado um gesto de montagem.
Faz-me lembrar uma frase do Straub chegada há uns tempos por mail (lembras-te, João? acho que, malcriado, nem te respondi...) e que agora reencontrei num texto do Rosenbaum. E vai mesmo assim em inglês, que não lhe conheço a circunstância: “A lot of people think that Eisenstein is the greatest editor, because he has some theories about it, but this is not true. Chaplin was greater, I think, in editing, only it is not so obvious. Chaplin was more precise than Eisenstein, and the man after Chaplin who is the most precise is surely Rivette.” Acho que percebo a subversão implícita: Chaplin em vez de Eisenstein, e Rivette em vez de... Godard, claro. Chamar a atenção para a montagem em Rivette (para além de fazer justiça a outra pessoa chamada Lubtchansky, a montadora Nicole) é pensar na colisão do heterogéneo nos seus filmes: as sequências em 16mm e 35mm em L'Amour Fou; os instantâneos da versão longa que interrompem Out 1: Spectre; as cenas dentro e fora da casa parada no tempo em Céline et Julie; as sessões de pose e o seu exterior em La Belle Noiseuse; o teatro e a vida em Amour Fou, La Bande des quatre, Va Savoir... Em cada um dos filmes é do choque entre as duas séries paralelas de imagens que nasce a duração. E muitas vezes as versões curtas, sacrificando a heterogeneidade, parecem mais longas.
Mas isto faz pouco para explicar porque é que perdemos o fôlego no mar daquele último segundo.

quarta-feira, 3 de dezembro de 2008

Política dos Autores


"Imagino que vocês se estejam nas tintas para o teatro. Nunca lá vão?" Quem pergunta é Louis Garrel, entrevistado nos Cahiers du Cinéma de Julho-Agosto. Resposta dos entrevistadores: "Pouco, infelizmente."
Vem isto a propósito de Hunger de Steve McQueen, sobre a greve de fome de Bobby Sands. Nos Cahiers de Novembro, o filme é lido, com toda a legitimidade, a partir das obras anteriores do artista - em vídeo ou em película, mas destinadas à galeria e não às salas comerciais de cinema. Hunger é o seu primeiro filme para esse espaço de apresentação, e a diferença (di-lo o próprio) é que teve de ter em conta os requisitos da narrativa. Não deixa por esta mesma razão de ser estranho que passe sem menção alguma o co-argumentista do filme, Enda Walsh. Por cá, no artigo do Ípsilon que destacava com justiça o filme como um dos pontos altos do DocLisboa, citava-se o nome de Walsh, mas sem sequer referir a sua outra "ocupação", e as peças suas que os Artistas Unidos já traduziram e encenaram. É que Walsh é o mais importante dramaturgo irlandês contemporâneo, bem mais interessante que Connor McPherson, Martin McDonagh ou Mark O'Rowe. E se formos capazes de por um momento olhar para os filmes sem os óculos dogmáticos da Política dos Autores (só por um momento, que são óculos de ver ao longe e de ver ao perto), ou, dito de outro modo, se formos mais ao teatro, talvez seja possível pensar Hunger também à luz da obra de Enda Walsh.
Algumas pistas:
1. McQueen fala muito da qualidade táctil das suas imagens, a materialidade que faz com que ver o filme seja uma experiência dos sentidos que ultrapassa o audiovisual. Mas não haverá algo dessa qualidade ("visceral", não é assim que se costuma dizer?) na linguagem de Walsh? Compare-se o retrato que o filme faz do "Dirty Protest" (as paredes das celas cobertas de excrementos, os prisioneiros nus por não aceitarem um uniforme que os tornaria iguais aos presos de delito comum) com esta passagem de Acamarrados (Bedbound):
E depois não senti chão debaixo de mim. Como o cão nos desenhos animados do Bip-Bip tentei correr no ar. Até foi mais ou menos divertido até ter caído. E caí num grande buraco. E bem até à cintura estava coberta de merda. Deixei rapidamente de tentar apanhar ar fresco e inspirei o ar de merda. Vomitei um bocadinho. Vomitei as colas que tinha bebido no autocarro. Limpei a boca do vomitado com uma mão coberta de merda. Cuspi a merda e comecei a subir uma escadinha que saía do buraco de cimento. E nem sequer chorei. E esta é a história do dia em que apanhei poliomielite.
(Trad. Joana Frazão)

2. São várias as peças de Enda Walsh (Acamarrados, The Walworth Farce, The New Electric Ballroom) onde a situação das personagens é a de uma clausura auto-imposta. Para além de quase todo o filme se passar numa prisão, não será possível ler a greve de fome de Sands como um exemplo extremo desse fechamento ao mundo, o próprio corpo um ermitério que recusa os alimentos, as coisas exteriores?
3. O filme insiste no silêncio entre os prisioneiros. É esse aliás um dos poucos reparos que quem passou pela prisão de Long Kesh (The Maze) faz a Hunger, sublinhando a camaradagem e o incitamento constante à resistência. Mas essa ausência de palavras, subtituídas pelos golpes dos guardas, existe para pôr em evidência a longa conversa entre Sands e o padre (um contraste também de découpage, com os planos aproximados até então frequentes a serem durante largos minutos postos de parte em favor de um plano-sequência que enquadra de longe os dois interlocutores, sem campo-contracampo). Aí se vêem todas as qualidades de dialoguista de Walsh: a velocidade, o humor, a torrente de palavras, a rememoração que assinala um trauma sem por isso reduzir tudo à psicologia. Uma ilha de teatro no meio do cinema? Não, no silêncio já havia a marca de Walsh, tal como isto não deixa de ser (óptimo) cinema. E será este diálogo tão walshiano assim? É afinal de um debate político que se trata, e não tinha, aparentemente, havido muito disso nas suas peças, habitadas por personagens preocupadas em contar incessantemente as suas pequenas histórias privadas que explicam a ausência de saída actual (é possível ler os seus textos como "prequelas" de peças de Beckett). Talvez aqui seja possível virar o jogo e (tal como o Pinter de Língua de Montanha ilumina o do Encarregado) começar com a ajuda de Hunger a fazer uma leitura política das peças de Enda Walsh.

quarta-feira, 5 de novembro de 2008

Prop 8

Numa noite extraordinária, a péssima notícia foi a passagem da Proposition 8 na Califórnia, banindo os casamentos entre pessoas do mesmo sexo que, meses antes, tinham sido aprovados. Há mesmo qualquer coisa de trágico na possibilidade de o aumento da participação eleitoral, esmagadoramente pró-Obama, ter contribuído para este desfecho. E parece-me que o próprio Obama, embora tenha dito que votaria "Não", tem aqui responsabilidades, dada a sua posição contra os casamentos e pelas uniões civis homossexuais.
O que não percebo é uma frase como esta (em stereo) de Miguel Vale de Almeida: "Infelizmente pouco indica que a igualdade sexual seja uma das suas [de Obama] causas estruturantes, pelo menos por comparação com a sua oponente nas primárias." Não é caso único, mesmo em Portugal: Hillary foi bem sucedida na criação de uma imagem resolutamente pró-LGBT, embora tenha exactamente a mesma posição que Obama na questão do casamento e esteja ligada por afinidade a duas leis discriminatórias que Bill Clinton aprovou, o Don't Ask, Don't Tell e o Defense of Marriage Act (ambas, salvo erro, contestadas por Obama e não por Hillary). Se calhar tenho andado a ler demasiado Andrew Sullivan, mas sempre me pareceu que Obama era apesar de tudo o candidato mais pró-gay - basta pensar no discurso de ontem. É que as palavras contam.

Ufa



segunda-feira, 3 de novembro de 2008

Lipstick

527, 538, earmarks, pork-barrel, Roe v. Wade, litmus test, all of the above, beltway, drink the Kool-Aid, SCOTUS, swift-boat... Há na política americana todo um vocabulário que é preciso dominar, um jargão para iniciados feito de siglas, abreviaturas, reminiscências de campanhas passadas, metonímias, uma panóplia de que fazem parte todas as expressões sistematicamente mal traduzidas pelas legendas do West Wing. Nesta eleição, para além de se terem usado todas estas, houve algumas que cristalizaram à sua volta as posições em confronto, ganhando uma materialidade que as destaca da indiferenciação linguística: coisas aparentemente banais como to cling, bitter, preconditions ou o demonstrativo that one, coloquialismos como doggone, slogans como Yes We Can e Drill, Baby, Drill, personagens pitorescas como Joe Six-Pack e Joe the Plumber - e uma das mais curiosas, lipstick.
No discurso à convenção republicana, piscando o olho e cerrando o maxilar, Sarah Palin explicou que a diferença entre uma hockey mom (ela própria) e um pit bull era o bâton. E Obama, falando das políticas falhadas de Bush umas semanas depois, dizia que se podia pôr bâton num porco que não deixava por isso de ser um porco. Aberto este jardim zoológico, que podemos expandir se traduzirmos hockey mom por mãe-galinha, a campanha de McCain acusou Obama de sexismo, por ter chamado porca a Sarah Palin (com o argumento sherlock-holmesiano de que é a única candidata que usa bâton). Sentiu-se o desespero que havia em desencantar o tema do machismo, para atrair apoiantes de Hillary. Embora seja difícil perceber como é que alguém que se auto-define como um pit bull se pode sentir ofendido se lhe chamarem porco (mais uma contribuição: na equipa de básquete do liceu, Palin era conhecida como Barracuda), se quisermos levar a discussão a sério vemos que o que está em causa são as propriedades transfiguradoras do bâton: para Palin este funciona como o beijo da princesa que muda o sapo em príncipe, uma espécie de elixir mágico que opera a transformação de um cão de raça numa rainha dos subúrbios; já Obama (cá está o seu materialismo, certamente socialista) parece chamar os bois pelos nomes, o bâton deixa de funcionar como catalisador metafórico. Obama consegue matar a metáfora mostrando a sua semelhança com uma expressão idiomática imediatamente reconhecível (lipstick on a pig), tornando inofensivo o mais raivoso cão tropológico. Um automatismo da linguagem serve de antídoto e impede a metamorfose pela maquilhagem. Para além disso é uma boa linha de defesa contra a paranóia da campanha de McCain: como pode esta inócua expressão que todos conhecemos, e que o próprio John "straight talk" McCain utilizou, ser uma alusão à anedota do pit bull? Miragens, sobreinterpretações.
Mas numa entrevista com David Letterman, resguardado pelo salvo-conduto do late-night, Obama arriscou um pouco mais: se ele estivesse a falar de Sarah Palin, que não estava, então o porco seria não a Palin mas as políticas falhadas de Bush, e Sarah o bâton que as não consegue disfarçar. Esta sofisticação e agilidade retóricas, onde uma dupla e muito mais criativa metáfora (ironicamente negada e blindada por uma expressão idiomática) mina o funcionamento da metáfora adversária, são uma demonstração inequívoca da superioridade de Obama face à equipa de McCain, que queria fazer passar cosmética por magia. O grande orador serve-se do straight talk para desmontar a oratória dos straight talkers. Quem é que não havia de querer um presidente assim? GObama!