terça-feira, 29 de janeiro de 2008

Ágon 2

Contou-nos um dia o Jorge Silva Melo, quando o entrevistávamos para Os Fazedores de Letras, a história da estátua de Laocoonte. Dela fala Lessing e o Jean Jourdheuil contou-a ao JSM como lição de representação. Como não encontro a entrevista, tenho agora de contá-la eu... Fotocópia de fotocópia, cada vez mais apagada. A estátua representa Laocoonte e os filhos debatendo-se com duas serpentes que os matarão: mas o futuro é incerto, no instante captado só se vê sofrimento e esforço, nada está ainda decidido. Assim deve fazer o actor, conservar a tensão em vez de mostrar o facto consumado.
Os stills dos filmes de Rivette que estão ali em baixo dizem isto mesmo: nada sabemos daquelas pessoas para além da luta por faca, revólver, faca. Aproxima-os a escala dos planos, a torção dos corpos, a tensão dos pulsos. Mas tudo o que vem antes e depois os distingue: Anna quer matar Thomas mas este surpreende-a pelo vidro da janela e desarma-a; Sophie quer matar Walser (fora de campo), Véronique tenta impedi-la e acaba por receber o tiro; Julien quer matar-se, Marie tenta impedi-lo e fará na carne de ambos uma incisão que distingue os mortos dos vivos.
É possível detectar uma progressão. No primeiro caso (La Bande des quatre, 1988) há música a acompanhar, a luta faz-se bailado, todos os gestos são visíveis e rituais; no segundo (Secret Défense, 1998), embora também resolvido num único plano, a estilização diminui, a arma dispara entre os corpos sem que a vejamos (na agitação a Bonnaire vira-nos as costas); no terceiro caso (Histoire de Marie et Julien, 2003) é tudo mais recortado, haverá grandes planos dos pulsos e da Béart. Do "teatro" para o "cinema"? Nada de tão simples. Persiste uma noção de coreografia, a acção é rápida mas o ritmo é nítido, os gestos desenhados: não há câmaras lentas, não se partem móveis e vidros em lutas intermináveis, não há montagens rápidas com grandes planos onde só passam sombras a correr, não há truques de "cinema". É a mesma disciplina que Cronenberg impõe aos acidentes de Crash.
Edward Bond descreve assim uma cena de violência com um polícia na sua peça A Prisão (está no programa da Cornucópia, 1995):

A destruição não é uma cena de comprazimento na violência caótica. É uma lição de capacidade de destruição, ensinada pela Autoridade. A Autoridade escolhe cuidadosamente os objectos a partir. As suas acções têm objectivos precisos. Treina a sua vítima eficientemente. Só no fim é que acaba por se tornar vítima de si própria. Vi um ensaio em que a luta estava marcada como um show de boxe de televisão. Era desastroso. O que mostrava é que a Autoridade até da violência na televisão era proprietária e que a transformava em produto comercial. Não mostrava a causa social e os custos psicológicos da violência.

Vejo os filmes de Rivette e lembro-me da cena do espectáculo entre Miguel Guilherme e José Meireles. Porque são todas cenas de "teatro"? Porque são contra a "televisão".

[penitencio-me pelas aspas irritantes - foi por uma questão de rapidez]

Spectre

Entro em estágio-Rivette, patrono deste blogue. É já em Fevereiro que começa o ciclo da Cinemateca, que promete a integral das longas-metragens. Dos primeiros filmes a exibir já vi todos tirando o Duelle: os mais difíceis passaram não há muito tempo no ciclo das longuíssimas metragens. Adorava poder rever entre outros o Amour Fou, agora na sala grande, mas temo que me impeçam motivos (como soi dizer-se) profissionais - talvez dê para ver as duas últimas horas, se me deixarem entrar.
Entretanto, uma dúvida persistente e pessimista vai-me roendo: será que na continuação do ciclo passarão de facto as longas-longas ou só a sua versão curta? É que a obra de Rivette é em muitos casos dupla - há o filme e o seu fantasma. Há Out 1 - Noli me tangere (quase 13 horas) mas também Out 1 - Spectre (mais de quatro); há a versão completa de L'Amour par terre (em dvd) e a truncada que estreou comercialmente; há La Belle Noiseuse e La Belle Noiseuse - Divertimento; finalmente, há Va Savoir e Va Savoir +. A dúvida cresce quando leio na programação de Fevereiro que a versão longa de Out 1 [e não "Out One", como erradamente se escreve: é o próprio Rivette quem diz que só o "out" é em inglês, o 1 é na língua que se estiver a falar. Já agora, também o título do novo filme está mal escrito: é Ne touchez pas la hache, e não "à la hache"] só foi exibida uma vez - é que tem sido mostrada nos vários ciclos Rivette que se fizeram o ano passado, como por exemplo no Centro Pompidou.
O Alexandre Andrade pertence ao diminuto subconjunto de portugueses que viu - julgo que em vídeo (eu até tenho aqui os vê-agá-esses, mas ainda não tive vagar...) o Noli me tangere. Não sei se haverá outra oportunidade de fazer crescer este número para valores que Langlois considerasse maravilhosos. E se exibirem o Va Savoir + eu prometo que pago as quotas em atraso. Já agora, se não for pedir muito: como vai haver, já este mês, o Jean Renoir, le patron (filme de Rivette sobre Renoir para a série Cinéastes de Notre Temps) rezo para que haja o Jacques Rivette, le veilleur (filme de Claire Denis sobre Rivette, que conversa com Daney).
Rivette diz que a rodagem de um filme é um complot. E um ciclo Rivette não pode deixar de sê-lo - mas teremos, antes do genérico final, acesso a todas as peças que permitam reconstituir o mistério? Eu enfiei na garrafa a minha carta, movi hesitante a minha peça: é um peão, mas quem sabe o seu futuro.

quarta-feira, 16 de janeiro de 2008

Gostos, florestas, luzes

Eu por acaso gosto de polémicas. É que quando não se consegue convencer, há pelo menos a hipótese de perceber em que é que se discorda. O que não é pouco. Começo por registar que Sérgio Lavos, como tem tendência para "psicanalizar" e sabe, "quando [lhe] dizem algo, o que está por trás do que dizem", gostou da concordância do Zé Mário Silva comigo. Por causa dos seus argumentos? Não, porque estava a "concordar com um amigo". Bravo, Freud.
No final do seu texto, acusa-nos (digo "nós" porque SL usa o plural) de elitismo. Segundo ele o que Manuel Gusmão escreve é "de uma lucidez impressionante" (ou melhor, o seu "tom" é que é, mas isso já não sei bem o que quer dizer), mas peca por usar "termos vindos da teoria literária" que tornam os textos demasiado "densos", uma autêntica "floresta barroca", e incapazes de "cativar leitores", especialmente se estes forem "menos exigente[s]". Já antes o "estilo" era considerado "pouco cativante".
Tenho desde logo uma objecção de facto: não me parece que MG abuse da terminologia literária e escreve certamente de maneira diferente no Ípsilon do que numa revista especializada (mas tem de haver um mínimo de vocabulário específico, ou não? se calhar "heterodiegético" é de evitar, mas "narrador" também?). Quanto a cativar, cada um se deixa "prender, escravizar, aliciar, seduzir" (é o que vem no dicionário) pelo que lhe convém. Eu por exemplo adoro uma floresta barroca quando a vejo, mas sei que nunca a encontrarei na escrita de Manuel Gusmão - na de João Bénard da Costa talvez. Já Pedro Mexia é melhor porque é "mais claro", e assim se constrói uma curiosa oposição entre a "clareza" (de PM) e a "lucidez" (de MG). Mas eu que os aproximei (apenas por serem críticos sérios e inteligentes) é que não fui capaz de "elucidar" as dúvidas de Sérgio Lavos. Talvez por ter o Sol de frente.
Estes pecados da escrita de MG não teriam importância, até porque Sérgio Lavos concede que "cada um é livre de escrever para quem quiser"; não fosse dar-se o caso de o espaço nos suplementos culturais ser "apertado". Como é assim, é preciso infelizmente fazer escolhas (duras, difíceis escolhas) - e quando for o Sérgio Lavos a mandar, já sabemos quem são os primeiros a ser dispensados.
Mas aquilo de que gosto mais é mesmo da acusação de elitismo, que só me apetece, infantilmente, devolver. Diz Sérgio Lavos: "acho Manuel Gusmão um dos melhores poetas aparecidos na última década, admiro os seus ensaios e leio sempre os seus textos para o Ipsilon." Portanto para ele não há dificuldades, a floresta transforma-se em jardim. O problema é o dos tais leitores "menos exigentes", os que não lêem a poesia (de baixas tiragens) nem os ensaios nas revistas especializadas (de reduzida circulação) de MG, tudo coisas de que o Sérgio gosta, que admira e a que tem acesso, mas que a gente de pouca exigência não tem que ter de aturar no seu suplemento semanal. Se isto não é elitismo não sei o que seja.

sábado, 5 de janeiro de 2008

Entusiasmo

Caro Sérgio,
0. Obrigado pela resposta.
1. O João Bonifácio tem todo o direito de defender a sua escrita e a maneira como faz crítica. Não disse nada sobre isso, nem quero propor hierarquias entre a crítica literária e a musical (que conheço pouco) - aliás, se elas existem, a julgar pelo espaço ocupado nos jornais (mais uma vez, o Ípsilon veio equilibrar um pouco as coisas), parecem privilegiar a segunda. Eu ainda nem sequer ouvi os tais The National, nem nenhum outro disco do ano, portanto não vou ser certamente eu a dizer o que é o pop/rock e o que a sua crítica deveria ser. Se tenho alguma razão de queixa, tem precisamente a ver com o entusiasmo: é sempre tudo tão genial que a gente desconfia.
2. Não sei se é sarcasmo, mas a violência adjectival é tão excessiva (a "verborreia" tem de ser "inenarrável", a "referencialidade" é "abusiva", os poetas são "maus", o "gáudio" é "onanístico" e até o salão tem de ser "pequeno") que só posso ler a descrição como um ataque directo à escrita de Manuel Gusmão que vai muito para lá do mero exemplo. Há tão pouca gente de jeito a escrever nos jornais sobre livros (Gusmão, Mexia, António Guerreiro e, sim, Joaquim Manuel Magalhães... mais algum?) que escolher um deles (e este entre todos) para atacar só fica mal ao JB.
3. Manuel Gusmão não é só bom poeta, é um ensaísta e professor brilhante. Poder lê-lo a escrever sobre um volume de Benjamin ou o Debaixo do Vulcão é um luxo absoluto. Pouco me importa se é para poucos (se é, a culpa dos "unhappy many" - a pior acusação deve ser mesmo a pequenez do salão), se destoa do resto do suplemento ou se ajuda a vender livros. A crítica devia ser muito mais do que isso, e às vezes, para nossa sorte, é.
4. Não vejo assim tantas diferenças entre MG e Pedro Mexia, para além das mais óbvias (geracionais e ideológicas). São ambos críticos inteligentes, sérios e que falam de facto dos objectos em causa (compara-se a crítica de MG ao livro do Blake com a que saiu na semana anterior no Expresso, que podia ser uma entrada de dicionário sobre o autor, sem qualquer relação com a edição da Antígona; ou leia-se o texto de Francisco Luís Parreira sobre Stevenson, que é um ensaio interessante sobre a novela mas nada diz sobre a tradução e os outros contos que o volume da Assírio inclui). Discordo completamente de que a escrita de MG seja nebulosa ou que padeça de "rodriguinhos de subjectividade". É até, imagine-se, capaz de "contar a história", até porque à paráfrase ninguém foge. Não é apenas bela ("este livro é um banquete e um jardim" - cito de cor), é uma escrita tão límpida quanto a complexidade (variável) do pensamento permite. É mesmo uma escrita que clarifica - leia-se o seu "Manifesto" publicado no Público do último domingo. Como diz Brecht sobre o comunismo, "É a coisa simples / Difícil de fazer."

[não falei de entusiasmos fingidos, disse que o Sérgio tinha reproduzido (i. e. transcrito no seu blogue) um comentário de JB que, pelos vistos, o tinha entusiasmado]

sexta-feira, 4 de janeiro de 2008

Gáudio

Não foi por acaso que citei o Manuel Gusmão ali em baixo. Achei inacreditável o modo como se fala dos seus textos no comentário do João Bonifácio a este post nos dias felizes, e que o Sérgio Lavos entusiasticamente reproduziu: "uma verborreia inenarrável de referencialidade abusiva exclusivamente centrada em maus poetas e escrita apenas e só para gáudio onanístico de um pequeno salão de medíocres." A maneira como Manuel Gusmão pensa é das melhores coisas que temos. Reivindico para mim o tal gáudio onanístico e quero saber a morada desse salão de medíocres. Se é pequeno, melhor ainda: nem sabemos a sorte que temos por haver alguém assim a escrever no Ípsilon, e a sua colaboração, juntamente com a do Pedro Mexia, é simplesmente aquilo que faz o dito suplemento dez vezes superior aos anteriores Y e Mil-Folhas. No contexto do seu comentário, posso pôr a hipótese (teórica) de o João Bonifácio estar a reproduzir não a sua opinião mas de um leitor imaginário sobre as críticas que ele próprio assina - até porque aquilo que resta do seu blogue é precisamente um verso de Manuel Gusmão. De contrário, tenham mas é juízo.

A fala das superfícies

Cheguei a esta crítica de Michael Wood a Os Maias através do blog do Rui Tavares. Interessou-me mais a primeira parte, mais teórica, do que o cotejar das duas traduções inglesas (duvido que "mountain of Bibles" seja uma tradução melhor, ou mesmo mais literal, de "montão de Bíblias" do que "pile of Bibles"). Gostei da comparação com Flaubert e principalmente com Balzac, pondo em causa o determinismo que é suposto ser o da escrita realista. Como diz Wood, "surfaces always speak, they communicate with the depths the way a trap-door communicates with a cellar or a space beneath a stage". O clima e a aprazibilidade dos ambientes portugueses comunicam com a inacção de João da Ega e Carlos da Maia, mas não a explicam, antes se reflectem mutuamente - tal como em Balzac a pensão esquálida é espelho e modelo para a Mme. Vauquer.
Ao ler as traduções dos excertos, ao imaginar o português ali por baixo, deu-me vontade de voltar a pegar no livro (quando foi? há quase 15 anos...). Mas não o tenho, preciso de ir à procura. E lembrei-me desta história que o Olímpio contava e que lhe tinha acontecido com um cliente na Bulhosa:
- Tem Os Maias?
- Sim. (Encontrando na estante.) Há nesta edição...
- Hmm. E não tem mais pequeno?
- Também há esta edição de bolso, mas o texto é o mesmo.
- Pois... E Os Incas, tem Os Incas?

quarta-feira, 2 de janeiro de 2008

Artista-tipógrafo



Quero usar esta expressão antiga que o Manuel Gusmão aplicou a William Blake numa crítica do último Ípsilon para descrever o Olímpio. Era uma das pessoas que mais sabia e gostava de livros, sem separar aquilo que dizem do objecto propriamente dito, fosse uma colecção de teatro dos anos 60 ou o poeta mais recente, ou o mais esquecido. Gostava de adivinhar, folheando um livro ao acaso, que tinha sido paginado por ele. Trabalhámos juntos nos números (sempre zero) que houve da revista da Abril em Maio, e no início dos Livrinhos de Teatro dos Artistas Unidos, onde falámos de formato, papel, fonte, maiúsculas, minúsculas e small caps, acentos em grego antigo, espaçamentos e itálicos, páginas em branco. Muitas provas trocámos de um lado para o outro, na Brasileira, no Jardim da Estrela, na Feira do Livro, em casa dele e da Mariana. Mas também falávamos de filmes - e de blogues. Do pouco que escrevi no Blogue de Esquerda II o Olímpio leu, ou disse que leu, e encorajou-me a continuar - mas, como ele, acho que sempre gostei mais de ser leitor.
Estive fora uns dias e fiquei contente agora ao ver que já escreveram sobre ele aqui ("bibliotecário de babel" também lhe servia...), aqui (tão bem, sem estar para aqui com biografices que não dizem nada do que é importante) e aqui [e ainda em mais estes sete sítios].
Deixo também ali em cima a bonita capa do nº 2 da revista Intervalo: o tema era "O Testemunho".