sábado, 15 de dezembro de 2007

Ortografia

Já vi por aí uma petição contra o acordo ortográfico que tem quase tantos erros quanto assinaturas. O curioso é que há outra petição que não incorre nos mesmos disparates e ainda muito pouca gente assinou. Ao contrário do que diz a primeira, não se vai passar a escrever "oje", "úmido" e "ilariante", mas é verdade que "acção" e "baptismo" passariam a "ação" e "batismo". O que é curioso é como estes exemplos desmontam a ideia de que o que desaparece são consoantes etimológicas sem valor fonético: de facto, o "h" das três primeiras palavras (que permanece) não tem qualquer contribuição para a pronúncia, ao passo que o "c" e o "p" mudos (que desaparecem) servem para abrir a vogal anterior.
Rui Tavares, no seu artigo no Público de terça-feira passada, parece adoptar a posição progressista: a ortografia de qualquer forma é uma convenção, portanto tanto faz esta como outra qualquer; e se isso unificar as maneiras de escrever da lusofonia, melhor ainda. Só que ao desmontar a suposta "naturalidade" da ortografia - quer dizer, uma perfeita adequação à fonética ("se assim fosse, os portuenses escreveriam 'Puârto' e os lisboetas 'Ljboa'") -, cai num relativismo excessivo (ninguém é multado por escrever como quer, e "não há nada de errado em a ortografia ser uma norma 'artificial': é para isso que ela existe"). Parte do problema está em usar uma dicotomia tão ideológica como "natural"/"artificial", para depois só desmontar o primeiro termo. A naturalidade da ortografia é tão artificial quanto o contrário. Uma boa maneira de a descrever, parece-me, seria como um equilíbrio delicado: entre etimologia e fonética, por um lado; entre várias pronúncias possíveis, conquistando um nível suficiente de abstracção, por outro (Maria Helena Mira Mateus fala aqui sobre a "natureza fonológica" e não fonética - ao nível da "langue" e não da "parole", não era assim? - da ortografia). Portanto as letras em princípio estão lá por alguma razão - podemos é achar que há razões mais fortes para as trocar. Não vale tudo.
Com o acordo, uma frase do artigo de Rui Tavares ficaria assim: "Se queremos adotar medidas protecionistas, adotemo-las." É óbvio que isso favoreceria a pronúncia "adutar" (ou "adoutar"?) e "prut'cionista". O título do artigo é "Correcto, correto, korreto". Um leitor português lerá em princípio as duas formas finais fazendo-as rimar com "coreto" e "amuleto" - o "c" mudo e etimológico serve também para abrir o "e", tal como em "objecto" ou "directo". Mas é claro que que a ortografia não resolve todas as ambiguidades: por exemplo o "e" em "discreto" é aberto... E em "espeto" pode ser aberto ou não, consoante se trate do nome ou da forma verbal. Com mudanças tão atamancadas não se estará a desequilibrar este já de si periclitante edifício? Tenho a maior desconfiança científica (eu que só fiz umas cadeiras de linguística na faculdade) sobre as propostas deste acordo.
Mesmo o "p" em "óptimo", se aqui não faz falta já faz em "optimista"... Ok, não tenho argumentos para salvar o "c" de "árctico", fora com ele. É óbvio que um gajo se habitua a tudo, mas será mesmo vantajosa a mudança? Admito que politicamente se possa pensar que sim (isto da linguística é muito mais político do que se imagina - há pessoas que não se entendem mutuamente e falam a "mesma língua", outras que falam "línguas diferentes" e percebem tudo o que a outra diz). Mas será que os ingleses se vêem aflitos quando lêem "neighbor" e "analyze" em vez de "neighbour" e "analyse"? [Parece que nesta frase se passa a escrever "veem" e "leem". Nada contra.]
Podia estar distraído nessa aula e percebido mal, mas lembro-me de o meu professor Ivo Castro dizer que nos cabia ser conservadores nestas coisas. Por exemplo, aguentar o "ter de" contra o "ter que" até já quase toda a gente (como agora) dizer "ter que", e só então dizer que não faz mal. Portanto preferia que quem está a aprender a escrever português europeu começasse sistematicamente a escrever "correto" ou "korreto", que nos rodapés dos telejornais aparecesse todos os meses "otimizar" e que alguém traduzisse um romance chamado As Regras da Atração antes de dar o meu solene imprimatur.
Até lá, como "está provado que só é possível / filosofar em alemão", o melhor é deixar "que digam, que pensem, que falem" - neste "latim em pó", com muita água do luso.

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