quinta-feira, 21 de fevereiro de 2008

Obama for America

Já circulavam na net as semelhanças entre a sexta temporada do West Wing (que está agora convenientemente a passar no AXN) e as actuais primárias nos EUA: um candidato de uma minoria étnica contra um vencedor antecipado entre os democratas, com a escolha do vencedor a decidir-se (?) na Convenção; um senador mais centrista (e mais velho) entre os republicanos. Ainda não tinha ido à procura de textos sobre os óbvios paralelismos, mas tenho andado a seguir o processo real como uma continuação da série por outros meios, até às tantas na CNN a cada novo episódio (a Super Tuesday foi uma espécie de compacto) - e não está nada mal feito. Na comparação entre a realidade e a ficção as coisas equilibram-se: o Obama é muito melhor do que o Matt Santos interpretado por Jimmy Smits (ok, a Hillary talvez seja um bocadinho melhor que o vice-presidente Bob Russell); mas gosto mais do Arnold Vinick do Alan Alda do que do McCain. E entretanto até já descobri quem é o Sam Seaborn do Obama, um "speechwriter" com 26 anos chamado Jon Favreau.
O plot twist vem no Guardian de hoje: como sempre que pensamos ver a vida a imitar a arte, parece que a personagem do jovem congressista Matt Santos se inspirou num jovem político do Illinois (ainda nem sequer senador) que acabara de fazer um grande discurso na convenção democrata...
O criador da série, Aaron Sorkin, abandonou-a no fim da quarta temporada - mas a sexta e a sétima (como estas coincidências ilustram) estão muito longe de ser um salto por cima do tubarão (uma opinião offshore que só se explica sabendo do transtorno extremo que o seu autor atravessava na altura).

Cenas da vida conjugal

- Querida, qual é que é para dormir, o chá de tília ou o chá de cidreira?
- O Xanax.

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2008

Caótico mas não absurdo

- Bien... C'est un peu décousu, non?
- Bien sûr, et après?
- Oh, ça n'a pas grande importance...
- Pourquoi?
- Parce que tout se lie sur un autre plan.


Já li de certeza isto algures, se calhar mais do que uma vez: é claro como nesta cena de Paris nous appartient entre Betty Schneider (Anne) e Giani Esposito (Gérard, o encenador de Péricles de Shakespeare) se expõe uma poética possível não só para este filme (onde a acidentada montagem de Péricles reflecte as dificuldades da rodagem do filme) mas para todo o cinema de Rivette. Como diz Gérard um pouco depois, "la mise en scène d'un monde chaotique mais pas absurde".
Mas desta vez (a segunda, ainda não cheguei aos três visionamentos que Luc Moullet exige, como se diz na folha da Cinemateca de Luís Miguel Oliveira) reparei noutra coisa: nos últimos cinquenta anos alguém mudou o pavimento do Pont des Arts.

Aço contra aço

- Monsieur, lui disait-il, l'une des choses qui m'ont le plus frappé dans ce voyage...
La duchesse était tout oreilles.
- ... Est la phrase que prononce le gardien de Westminster en vous montrant la hache avec laquelle un homme masqué trancha, dit-on, la tête de Charles Ier en mémoire du roi qui les a dit à un curieux.
- Que dit-il? demanda madame de Sérizy.
- Ne touchez pas à la hache, répondit Montriveau d'un son de voix où il y avait de la menace.
- En vérité, monsieur le marquis, dit la duchesse de Langeais, vous regardez mon cou d'un air si mélodramatique en répétant cette vieille histoire, connue de tous ceux qui vont à Londres, qu'il me semble vous voir un hache à la main.
Ces derniers mots furent prononcés en riant, quoiqu'une sueur froide eût saisi la duchesse.
- Mais cette histoire est, par circonstance, très neuve, répondit-il.
- Comment cela? je vous prie, de grâce, en quoi?
- En ce que, madame, vous avez touché à la hache, lui dit Montriveau à voix basse.
Balzac, La Duchesse de Langeais


É desta declaração de guerra que vem o título do último filme de Rivette, adaptação do romance de Balzac: está em itálico no livro e era mesmo o título com que ele chegou a ser publicado, antes de Balzac o mudar para La Duchesse de Langeais. Com uma pequena diferença: Montriveau diz (no livro e no filme) Ne touchez pas à la hache, mas o filme chama-se Ne touchez pas la hache. Sem sensibilidade suficiente ao francês para distinguir "toucher" como verbo transitivo directo e indirecto (embora em português também se possa "tocar o machado" e "no machado"), parece-me no entanto ser dupla a razão desta preposição a menos.
Por um lado, trata-se de cumprir a regra de Renoir segundo a qual o título do filme nunca deve ser pronunciado nos diálogos: nunca ninguém fala numa "regra do jogo" nem numa "grande ilusão"... E Rivette tem respeitado quase sempre este preceito (com pelo menos uma excepção:
Secret Défense).
Por outro lado, talvez se mostre aqui a estratégia da adaptação.
La Belle Noiseuse (a partir de Le chef-d'œuvre inconnu, também de Balzac) é o título do quadro que Frenhofer pinta na novela: a adaptação era portanto redução, mise en abyme e passagem do que pode ser lido para o que pode ser visto. Em Hurlevent, a partir de Emily Brontë, desaparece metade do título (Wuthering Heights/ Les hauts de hurlevent). Agora, em Ne touchez pas la hache, um duplo movimento que brinca com a (im)possibilidade de ser extremamente fiel: regressar filologicamente à origem, até antes da origem, ao primeiro título entretanto abandonado, sabendo no entanto que há uma falta no centro desse processo - um à minúsculo, uma pequena diferença.