quinta-feira, 3 de abril de 2008

Anónima acupunctura

[Sorry, é outra vez sobre aquele assunto que eu disse que ia evitar. Pus um bocadinho a bold ali em baixo para quem ainda só estiver quase farto desta conversa.]
Concordo em absoluto que há pessoas que percebem muito mais disto do que nós, Ivan, mas é daquelas coisas que nos diz respeito a todos e provavelmente não devia ser deixada só para especialistas. Aliás, parece-me que entre os cronistas mais destacados pouca gente se contém: do Rui Tavares a Vital Moreira, passando por VPV, são raros os que resistem. Eu já pensava ter arrumado mais ou menos a coisa na cabeça depois de escrever isto, isto e isto, mas os teus posts levaram-me a voltar ao assunto. Até tive paciência para ouvir as duas partes do debate que houve em Fevereiro na Casa Fernando Pessoa, principalmente para saber o que dizia Ivo Castro, que foi meu professor - e aproveitei para ver os defensores do acordo, Agualusa e Malaca Casteleiro, a serem um reduzido ao silêncio e o outro à incapacidade de argumentação.
Depois disto tudo aproximo-me progressivamente de uma atitude zen - ou, como diz Ivo Castro, jesuítica, aproveitando as desgraças o melhor possível (embora antes ele próprio tivesse dito que o acordo tinha desvantagens mas não era provavelmente uma desgraça).
Sobre a fraqueza que apontas aos meus argumentos - julgo que os do último post, espero que não tenhas perdido tempo a ler os anteriores - gostava de dizer uma ou duas coisas. Primeiro, as pobres consoantes mudas. Não sei que consequências para a pronúncia pode ter no futuro o seu abandono; o que quero rebater é o argumento dos defensores do acordo actual segundo o qual essas consoantes são apenas etimológicas: ora não são, e o critério do acordo de 1945 para as conservar foi precisamente a sua função fonética (abrir a vogal anterior). A ortografia é um compromisso possível (e negociável de tempos a tempos) entre a maneira como dizemos as palavras e a sua história, entre fonética e etimologia - por isso não escrevemos nem com o alfabeto fonético nem em latim. Um dos problemas deste acordo é impor um critério fonético para apagar consoantes que até desempenham um papel (indirecto) na pronúncia, ao mesmo tempo que mantém o h inicial (e puramente etimológico) em palavras como "húmido", "homem", "hesitar", etc. Dás o exemplo de "inflacionário", onde a pronúncia do a aberto não é assinalada; mas as vogais abertas que não são acentuadas são a excepção no português europeu, gerando até casos de hipercorrecção (gente que defende, sem razão, que se deve dizer "mestrado" com o e fechado, por exemplo). Com o acordo estas excepções aumentam muitíssimo, e sabendo da tendência do português europeu para fechar as vogais átonas não me admira que venhamos a ouvir que se deve dizer "adução" em vez de "adopção". E há obviamente a excepção contrária, ou seja, vogais que não abrimos apesar de terem à frente uma consoante muda: actriz, actual... aqui conservadas pelo acordo de 1945 por questões de consistência com outras palavras da mesma família onde se abre a vogal ("Óptimo" tem o p, embora com o acento não precisasse, por causa de "optimista". Teve aliás graça quando Carlos Reis, no seu artigo recente no Público, disse que até os italianos, herdeiros directos do latim, se viram livres do p em "ottimo" - sem pensar porque é que ali estavam dois tt e não um...) A ortografia é portanto um equilíbrio precário, com excepções e incongruências inevitáveis. Este acordo aumenta-as de forma imprevisível, pelo menos para nós que jogamos com as palavras de que a custo nos lembramos para exemplos. E sim, faz-me confusão escrever "espectador" e "espetáculo", "Egito" e "egípcio", "apocalítico" e "apocalipse", "infeção" e (para mim) "infeccioso", "caráter" e (para outros) "característica"...
Este "para mim" e "para outros" tem a ver com o maior problema do acordo, que é a facultatividade: não só vai continuar a haver diferenças inconciliáveis entre a escrita em Portugal e no Brasil (fenómeno/fenômeno, oxigénio/oxigênio, corrupto (cá) / corruto (lá), receção (cá) / recepção (lá)) como se abre espaço para a dupla grafia no mesmo país: assim, em Portugal, uns escreverão "sumptuoso" outros "suntuoso", uns "sector" outros "setor"... conforme pronunciem ou não a consoante (já agora e ao contrário do que eu tinha dito: "facto" não é um destes casos, já que no português europeu o c é sempre pronunciado). E no Brasil, onde se escreve "Antônio", há zonas onde se diz "António", portanto essa escrita também será possível. Ora a ortografia serve precisamente para que não haja este tipo de variação: existe num nível de abstracção para lá dos vários sotaques e pronúncias, senão uns escreviam "vaca" e outros "baca". Ivo Castro propõe que se criem sub-ortografias em cada país, sem facultatividade, que venham resolver este problema criado pelo acordo - talvez resulte, mas é um remendo para limitar os danos de um facto consumado.
Gastei o post quase todo nas questões "científicas", que se calhar nem são as mais importantes. É que não consigo ver quais são as grandes vantagens de uma semi-unificação ortográfica. Como já disse num dos posts anteriores, não é a grafia que faz difícil o Guimarães Rosa. Nem preciso de acordo (que aliás nisso não me ajudaria) para saber de que trata a canção "Cotidiano". Enquanto falarmos a mesma língua havemos de nos perceber o melhor possível, sabendo que é no léxico e na sintaxe, e não na ortografia, que estão as maiores diferenças. Estar a corrigir os livros todos, seja em seis anos ou em seis dias, representa um custo e um esforço insanos para resultados tão modestos. Durante uns tempos vamos andar todos a dar imensos erros ortográficos, e eu a irritar-me ainda mais ao ler o jornal ou a corrigir quem ainda escreve "excepção" e quem acha que agora se escreve "fato". Falei do custo em árvores. Estavam em vez da floresta.
Resumindo, este acordo:
- tem um objectivo inútil, ou quase, porque não é a ortografia que dificulta a comunicação entre os falantes do português
- nem sequer cumpre aquilo a que se propunha, já que continua a haver várias diferenças entre as grafias portuguesa e brasileira (estes dois pontos fazem dele um desperdício de recursos que podiam ser aproveitados para facilitar a circulação dos livros entre os países da "última flor do Lácio" - sempre regada a água do luso)
- tem falhas científicas, quer ao argumentar de forma inconsistente para excluir as consoantes mudas, quer ao abrir espaço para duplas grafias no mesmo país, contrariando a própria noção de ortografia
- já me fez perder muito tempo, mas confesso que até gosto destas discussões chatas que costumam esvaziar os lugares à minha volta

[Quanto ao trema: não me importava nada que ainda existisse, mas graças ao acordo os brasileiros é que vão ficar sem ele.]

1 comentário:

Jorge Louraço Figueira disse...

Pois, também fiquei triste quando soube que o trema desapareceria. É que tenho usado o trema secretamente. E vais gostar do meu livro: tem o texto original em grafia portuguesa, os depoimentos e citações em grafia brasileira, tudo nas mesmas páginas. ;) Menos árvores.