terça-feira, 30 de dezembro de 2008

Pinter 2

Pinter é um daqueles escritores em quem é fácil apontar fases sem errar demasiado: há o teatro da ameaça (Feliz Aniversário), o da memória (Há Tanto Tempo) e o político (Língua de Montanha). Estabelecidos os períodos cronologicamente convém dar início à releitura e perceber o que havia já de político nas primeiras peças; ou como um aparente divertimento como O Amante se transfigura à luz das Traições. Por isso foi tão importante o ciclo que os Artistas Unidos dedicaram ao autor entre 2001 e 2003 (antes do Nobel!). E fazer modestamente parte desse trabalho (traduzindo, revendo, conversando, transcrevendo, editando) foi importante para mim. Foi com O Encarregado, por exemplo, que percebi como a tradução de teatro tem que ver com o espaço, não são só letras num ecrã ou num papel: "that" pode ser "isso" ou "aquilo", e para saber qual é preciso saber onde é que estão os actores. E Pinter é talvez o autor que melhor domina o seu ofício, tudo bate certo, os tempos, as deslocações, os adereços.
Por isto foi o único Nobel com que fiquei mesmo contente (Saramago who?). Em Junho de 2005, ainda antes do dito (mas já depois de eu sair dos AU), o espectáculo Conferência de Imprensa e Outras Aldrabices - com novos textos breves de autores como Enda Walsh, Jon Fosse, José Maria Vieira Mendes, Juan Mayorga, Spiro Scimone e Miguel Castro Caldas, entre outros, tendo por mote um sketch de Pinter - foi uma das mais fortes e originais homenagens que se fizeram ao autor, e isto pensando em termos internacionais. [Razão portanto para lembrar a forma infame como os resultados financeiros do espectáculo foram utilizados pelo Ministério da Cultura para demitir um director do Teatro Nacional.]
A verdade é que, como escreveu Jorge Silva Melo no Público, a influência de Pinter se faz sentir em muitos dos melhores dramaturgos que surgiram nas últimas décadas, de Sarah Kane a Scimone, Fosse e Crimp. E isso vai durar. A última prova que vi foi na ópera Outro Fim, de Pinho Vargas/Vieira Mendes. A didascália inicial diz "Talvez três espaços que se possam ver em simultâneo. Casa de Irmão e Cunhada, casa de Mulher e Mãe, e entre estes dois o café onde as restantes cenas acontecem." Como não ver neste espaço tripartido, que concilia público e privado, uma reminiscência daquilo que Pinter propõe para A Colecção, com uma cabine telefónica ladeada pelas casas de Harry e James? A crítica de Cristina Fernandes a Outro Fim, ao sugerir um arranjo "em patamares", passa ao lado de uma ligação (inconsciente?) que, na minha memória, as cenografias dos espectáculos de Artur Ramos e André e. Teodósio só vêm reforçar. Que maior curto-circuito no teatro português poderíamos imaginar? É a Pinter que temos de agradecer.

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