sábado, 20 de setembro de 2008

Descrever

Aprendia-se na escola a distinção entre a narração ou "momentos de avanço", aqueles em que aconteciam e se faziam coisas, e a descrição ou "momentos de pausa", onde a acção parava e ficávamos a olhar para a paisagem ou para o interior de uma sala. Era fácil de distinguir, havia até aqueles que ao ler Os Maias se gabavam de saltar as descrições, ou outros como eu que ao ler o Cão dos Baskervilles as sofriam com maior ou menor esforço e sacrifício e chegavam ao fim com uma leve sensação de conquista - precisamente aquelas descrições de que fala Ruth Rendell com admiração no artigo que o Zé Mário linkou.
Claro que mais tarde se percebe que as coisas não são assim tão simples, isto sem pôr em causa que elas existem - se não existissem não se podiam saltar. Porque num livro tudo significa (nada está por acaso), pode-se olhar para as descrições como a continuação da narração por outros meios. Quando, no início do conto de Poe, se descreve a fachada da Casa de Usher, já se está a contar a história. E a inversa também é verdadeira: uma acção não é transparente, é preciso seleccionar, escolher para onde olhar, traduzi-la ou inventá-la usando umas palavras e não outras. A escrita é uma maneira de representar - dito de outro modo, escrever é descrever. É por isso que uma colectânea de críticas literárias de Pasolini se chama Descrições de descrições.
Tudo isto tem a ver com dois escritores que, se não fossem os blogues, provavelmente teria levado muito mais tempo a descobrir - a chatice é isto acontecer quando morrem, mas isso é outra conversa. Foi graças a este texto do Rui Tavares que ouvi pela primeira vez falar de Sebald, numa altura em que, julgo, ainda não havia nenhum livro seu editado em Portugal. E agora, para minha vergonha, confesso publicamente que não fazia ideia de quem era David Foster Wallace antes de ler isto (logo adivinhando que o Rogério o conheceria de gingeira).
Voltando às descrições de coisas a acontecerem ou a fazerem-se, talvez ali em cima me tenha apressado: dei a entender que antes da escrita há algo que já lá estava, uma realidade prévia à linguagem. Foi por facilidade. Mas é uma facilidade que é um efeito da própria escrita, ela cria uma ilusão (de óptica) que nos faz supor um mundo onde só há palavras. Nalguns casos, aparentemente mais simples, as coisas estavam mesmo lá - como no cinema, diz-nos Bazin ao teorizar-lhe a ontologia. Ou numa reportagem televisiva, ou uma transmissão desportiva em directo. O que esteve (ou está) ali, de carne e osso, passa a estar aqui, no ecrã, representado. E há então uma operação possível, singela no seu artesanato (não é a arte de criar mundos) que consiste em traduzir essas imagens em palavras: descrever as descrições. Não há nada mais difícil. Quando isto é feito pelos melhores, este encadear de frases objectivas, instrumentais, quase só nomes e verbos e poucos adjectivos, tem qualquer coisa de jubilatório. É isso que se sente ao ler a descrição feita por Rivette de Peaux de Vaches, que há tempos transcrevi aqui. E é isso que se sente ao ler como David Foster Wallace descreve uma jogada entre Federer e Agassi, no excerto judiciosamente postado pelo Zé Mário. Uma modesta alegria. Não vi nem a cena nem a jogada: mas li-as. Ténis e cinema? É melhor parar por aqui, antes de ir buscar o Serge Daney à estante.

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