segunda-feira, 29 de novembro de 2010

Elogio da terceira coisa

Jacques Rancière
O Espectador Emancipado
Orfeu Negro, 2010,
trad. José Miranda Justo,
192 págs.

Conferência de 2004, “O Espectador Emancipado” era um segredo mal guardado das artes performativas: foi anexo de emails, pretexto de debates, epígrafe de programas. Numa área onde a produção de teoria é escassa, este é um texto central – e o seu maior contributo é o de desmontar a ideia de comunidade como a priori do teatro. Para Jacques Rancière, a especificidade que nasceria da co-presença de actores e espectadores, tentando ingenuamente colmatar a separação que o teatro pressupõe, deve ser substituída por uma pluralidade de traduções (assentes na “igualdade das inteligências”) de uma “terceira coisa”, o espectáculo.
A emancipação do espectador seria assim não o anular de uma separação, o restabelecimento de uma união perdida (a ideia marxista de alienação) mas sim, como se diz no segundo texto deste livro (“As desventuras do pensamento crítico”), “uma experiência nova de vida e de capacidades individuais”. Numa época dominada pelo consenso, as “cenas de dissentimento” permitem uma rotura, uma redistribuição dos papéis atribuídos por uma “partilha policial do sensível”. O dissentimento é o ponto onde arte e política se encontram: se “a política começa quando há rotura na distribuição dos espaços e das competências”, a arte faz-se no “conflito de vários regimes de sensorialidade”. O regime representativo estabelecia uma continuidade entre a obra e a sua interpretação, e entre esta e o seu efeito ético; mas o regime estético que surge no século XVIII opera uma suspensão, uma desconexão destes laços entre ver, pensar e agir. É por isso que a antecipação dos efeitos das obras de arte é a maior armadilha em que pode cair uma arte política: os intervalos abertos pelas obras no regime estético são micropolíticas do sensível, mas os seus efeitos devem permanecer imprevisíveis. É um d’ “Os paradoxos da arte política”, o terceiro ensaio deste livro.
“A imagem intolerável” contribui para o debate em volta das fotografias de Auschwitz estudadas por Didi-Huberman. Contra os que invocaram a irrepresentabilidade da Shoah, Rancière desmantela a oposição entre palavra e imagem, testemunho e prova. E em “A imagem pensativa” procura descrever a pensatividade como a presença indecidível de várias “funções-imagens” na mesma superfície.
A tradução rigorosa de José Miranda Justo assegura felizmente o “valor de uso” deste livro fundamental, de argumentação límpida e conclusões produtivas. Mas é pena que a edição portuguesa opte por dar página própria às fotos ao alto, em vez de provocar – num livro feito de montagens e como queria Walter Benjamin – o confronto entre texto e imagem.

[Expresso-Atual, 27.11.10]