sexta-feira, 4 de janeiro de 2008
Gáudio
Não foi por acaso que citei o Manuel Gusmão ali em baixo. Achei inacreditável o modo como se fala dos seus textos no comentário do João Bonifácio a este post nos dias felizes, e que o Sérgio Lavos entusiasticamente reproduziu: "uma verborreia inenarrável de referencialidade abusiva exclusivamente centrada em maus poetas e escrita apenas e só para gáudio onanístico de um pequeno salão de medíocres." A maneira como Manuel Gusmão pensa é das melhores coisas que temos. Reivindico para mim o tal gáudio onanístico e quero saber a morada desse salão de medíocres. Se é pequeno, melhor ainda: nem sabemos a sorte que temos por haver alguém assim a escrever no Ípsilon, e a sua colaboração, juntamente com a do Pedro Mexia, é simplesmente aquilo que faz o dito suplemento dez vezes superior aos anteriores Y e Mil-Folhas. No contexto do seu comentário, posso pôr a hipótese (teórica) de o João Bonifácio estar a reproduzir não a sua opinião mas de um leitor imaginário sobre as críticas que ele próprio assina - até porque aquilo que resta do seu blogue é precisamente um verso de Manuel Gusmão. De contrário, tenham mas é juízo.
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9 comentários:
Francisco: a frase era, obviamente, provocatória. Ainda não tive hipótese de explicar, nem mesmo quando o Mexia me deu, por sms, tau tau por eu ter sido mauzinho,visto esse ser azarado dia e estar de neurónios cansados com os afazares da vida, por isso explico agora, e é com prazer que o faço, visto ter por ti simpatia e assim evitar trabalhar. Simpatia baseada em quê? Eu sei lá. Gostei do que vi na tua biblioteca, da única vez que a vi. Não há nada que me seduz tanto quanto uma biblioteca.
Ora são então estas - não apenas estas, mas acima de tudo estas - as contas deste pobre rosário: eu tinha, uns dias antes desta relativamente patética polémica (um dia quero vir a estar envolvido numa polémica a sério, como por exemplo ser acusado, por um salão de medíocres, de não saber falar francês e ser acusado antes de me perguntarem se de facto errei ou não) feito um comentário a um amigo, dizendo que gostava imenso de alguns poemas do Gusmão, mas que a introdução dele ao "A Noite e o Riso" do Bragança me cansava. O amigo, moço de maiores azeites mas de bastas leituras, entregou-se a um exercício intestinal em que, confirmando igualmente o seu interesse na poesia do dito ensaísta, vertia o seu fel pelas suas críticas, em termos aproximados aos que reproduzi. O putativo leitor era outro, mas obviamente que no comentário ao post deixei que a ambiguidade permanecesse. Coisa de mau feitio e truque de escrita: não atribuindo a frase a ninguém o argumento passava de um pobre itálico a um grunho negrito. Claro, a citação que encerra há meses o meu finado blog (uma espécie de nado morto que só existiu durante duas ou três semanas, tempo suficiente para eu perceber que não tinha talento nenhum para a coisa e, por isso, abandonar o dito, algo que, quer-me parecer, se fosse mais vezes feito não viria mal algum ao mundo) servia, de antemão,de sobreaviso (isto leva hífen ou não?, tu sabes mais disto que eu), como quem diz: olhem que se calhar o óbvio não é o óbvio. E assim duplamente demonstrando que o olhar, o olhar está demasiadas vezes turvo por elementos estranhos ao(s) objecto(s).
A hipótese - o que interessava - era só uma: porque raio pode um crítico literário (ou de arte contemporânea ou de cinema) escrever o que quiser e como quiser que nunca é pedante, onanista, vazio, etc?
Os nomes escolhidos foram simbólicos: um porque ainda por cima gosto da poesia dele e tinha a dita citação no dito desblogue (e assim funcionava como uma espécie de rima hitchcockiana), o segundo (o Correia Guedes) porque me parece exemplar de cronista desbragado para quem os factos e o real são indiferentes e no entanto, por questões de classe (this one goes out to you, Pedro) é eternamente desculpado nas suas diatribes, má-educação e erros (como dizer que Portugal nunca mudou). O Correia Guedes, em país de micro-Eças, tinha de lá estar.
Como vês, Francisco, tudo muito simples, tudo muito óbvio, e qualquer semi-leitor que estivesse desadormecido perceberia muito bem.
Um abraço.
João Bonifácio
João,
Depois da quantidade de caracteres que escreveste no comentário ao post dos dias felizes eu ficava ofendido se não viesses aqui dizer umas frases! Ainda bem que encontraste o caminho, espero que sem demasiadas dificuldades, apesar da pouca luz.
Só escrevi sobre isto porque o teu texto foi copiado no Auto-retrato, caso contrário deixava-o estar lá nas profundezas dos dias felizes e engolia a minha irritação - ou, se tivesse o teu número, mandava-te um sms. Ok, por isso e porque sou chato.
Não fazia ideia de que havia um grupo de pessoas que admirava a poesia de MG ao mesmo tempo que detestava as suas críticas e ensaios (há pelo menos o teu amigo e o Sérgio Lavos, já dá quase para um salão). Para mim isso é novidade, e inconcebível - até porque as coisas não são facilmente separáveis.
Não tenho aqui o livro do Nuno Bragança, portanto não posso ir reler, mas lembro-me que o prefácio era bom. E lembro-me de um texto do MG sobre a maneira como escreveu um poema seu. Está num número da Relâmpago. Não só o texto é genial como torna simplistas e inglórias quaiquer tentativas de destrinçar a sua prática poética da ensaística. Enfim, o exemplo de MG como escritor e professor é tão importante para mim (e não só para mim) que mais vale avançar.
Quanto ao Correia Guedes só há bocado é que se me fez luz e percebi de quem é que estavas a falar (sei lá, podia ser alguém a escrever no JN, ou assim). Não sou eu que o vou defender.
Finalmente, talvez tenhas razão quando dizes que a crítica musical sofre mais ataques (ou esse tipo de ataques) do que as restantes. Foi aliás assim que li inicialmente o teu comentário, mas a violência anti-MG era tanta, como expliquei acima, que tinha de haver gato escondido, com ou sem itálico. Mas se não duvido de que os teus textos são mais atacados do que muita coisa medíocre que por aí circula, também me parece que no âmbito da crítica literária são precisamente os melhores os que geram as reacções mais venenosas - a lista no post de cima não é ao acaso. São reacções que costumam ser ou ressabiadas, ou anti-intelectuais, ou ambas. Vem mesmo a calhar que, na morte do Luiz Pacheco, Eduardo Pitta se refira aos comentários de Aguiar e Silva e de MG (o deste, aliás, sem entusiasmos excessivos) como vindo "destes professores", e o Sérgio Lavos esfrega com mais força, como se ainda não tivéssemos percebido, ao chamar-lhes "senhores professores". Como vês, o teu amigo não é o único.
[Já agora, digo-te que a simpatia é mútua. E tenho pena que tenhas deixado de escrever no blogue e, pior, que o tenhas apagado - só pelo título valia a pena. Não percebi aliás se me aconselhavas a apagar este - é um bom conselho, até porque também percebi passadas duas ou três semanas que não tinha muito jeito para isto. Mas que queres, a gente afeiçoa-se às passwords, e sempre é uma maneira mais activa de ler os outros.]
Abraços do
Francisco
Francisco, começo pelo fim: não era de todo um conselho a findares o blog. Antes de mais, não dou conselhos; depois leio-te com interesse (apesar da raridade com que escreves) e tenho pena de não nos encontramos mais vezes. Era um comentário - diagonal - à proliferação de proto-ensaístas na blogosfera. Por vezes fico admirado com o tanto que tanta gente sabe com tanta certeza.
Acabei com o blogue porque não tinha jeito. Preciso de muitas palavras para pôr os pensamentos em ordem, o que quer dizer que a) sou um chato; b) sou demasiado conceptual; c) não tenho talento (nem muita paciência) para aforismos (com devidas excepções).
Indo ao que interessa: acho de facto o prefácio aborrecido, mas há aqui um mas: mas é tão visceral a minha relação com aquele livro, tão próximo do que me interessa literariamente (e na vidinha) que qualquer tentativa de explicação à partida me irrita. Isto é: admito um preconceito.
Acho, por outro lado, graça que te admire a cisão entre apreciação de dois tipos de obra de um mesmo autor. É natural, por um lado: um tipo ganha afinidade com um certo tipo de escrita. Mas nada obriga a que gostemos de dois tipos de registo. Como nada obriga a que se goste tanto de um autor como da sua obra. Mais ainda num poema, que obriga a um laminar obsessivo, como se lapidássemos uma catedral num tronco de uma árvore. Essa exactidão na poesia de que o Rilke falava pode muito bem não existir em restante obra.
Aliás, eu tinha a intenção de, com a menção da vertente ensaística (de jornal; já li outras coisas que me interessam, mas tenho de estar para aí virado) do Gusmão, deixar implícita, via citação no blogue, a fragilidade de qualquer argumentação do tipo que "me" acusavam (e também da minha). Isto porque não quero ter razão - só queria ver menos razão em quem parece ter tanta.
Não me apetece defender a crítica musical popular. Até te digo que me interessam mais os livros (e a escrita) que canções. (O que não gramo é diminuição por hierarquia.)
Concedo uma coisa: relendo o texto pode parecer que escrevi um comentário anti-intelectual (do género: "Lá estão estes chatos do camandro"). Nada disso: a academia interessa-me, mesmo quando me ultrapassa. (O que não quer dizer que goste de uns e de outros não.)
Não há expressão que me irrite mais que "pseudo-intelectual" e tenho todo o respeito por quem usa a cabeça como modo de vida.
Quem me dera a mim saber usar a minha.
Abraço.
JB
Quando disse que me tinhas aconselhado a fechar o blogue estava a fingir que te tinha treslido. Estava de facto a identificar-me com as razões que deste para terminares o teu, e a dizer que - como se prova neste endereço - não é preciso grande talento para ir postando umas coisas, e sempre vêm de vez em quando cá umas pessoas ler e dizer umas coisas.
Sobre a indistinção entre as vertentes da obra de um mesmo autor, estava a pensar nos cineastas da Nouvelle Vague que quando estavam nos Cahiers faziam crítica "enquanto cineastas", e que depois de começarem a filmar continuaram, nesse outro modo, a fazer crítica de cinema. Os textos do Gusmão prestam-se com facilidade a este tipo de raciocínio: a tal "explication de texte" na Relâmpago demonstra o pensamento por trás do poema (ou mostra como o poema pensa). Algo de parecido, no sentido inverso, pode ser dito sobre os ensaios. Afinal, como o próprio costuma lembrar, "poiesis" significa "fazer". O que quer dizer que, por maior que seja a inspiração, dá trabalho.
Francisco: desculpa demorar tanto a responder a este teu último comentário. O suceder de empecilhos da vidinha atrasa-me a correspondência.
De acordo com a tua última frase: desconfio imenso da inspiração, acredito imenso no trabalho. Julgo até que a inspiração, depois de servir de espoleta para o trabalho, só volta a surgir apenas a meio deste, mas poderei estar errado.
Quanto à união (ou paralelismo) entre ensaio e poema ou crítica de cinema e cinema, desconfio que pouco tenho a dizer. O exemplo da Nouvelle Vague é localizado, embora tenha semelhantes.
Sei-me mais propenso a acreditar numa escrita em que a própria escrita pensa, em vez de o escritor pensar e a escrita ser o reproduzir desse pensamento. Isto é: não me interessam tanto os romances e poemas de ideias, mas sim aqueles em que a "Ideia" está imersa numa sucessão de acontecimentos e palavras, no ritmo e no brilho. Em que a estrutura escolhida e o tom de cada personagem/verso comportam uma ideia de mundo - ao invés de esta ser explicitada, reproduzida. Não há uma ideia de humanidade no Faulkner (por oposição, digamos, ao Gonçalo M Tavares, que tem imensas) e no entanto encontro uma maior premência humana no primeiro e apenas vagas definições/axiomas que julgo intelectualmente pobres no segundo. Exemplo: custa-me que um escritor afirme "O medo é [etc]" como Tavares faz, sem recorrer à ciÊncia. Ou que o faça pleno século XXI. Uso estes exemplos para me tornar claros, visto serem muito distantes entre si.
Prefiro portanto os que por palavras reproduzem ou criam - conscientes dos limites da literatura - uma atmosfera de medo, em vez de uma definição. Neste meu pequeno e medíocre exercício, estou a enunciar uma "ideia" de literatura. Estou certo que todos os romancistas farão este exercício com maior premência e - palavra detestável - profundidade, pelo que, à partida, acredito que mesmo que não exerçam a actividade crítica de forma profissional ou académica, se prestem ao exercício até como filtragem do seu próprio trabalho.
Mas, como te digo, isto são exercícios de adivinhação. Não faço ideia se o Céline ou o Hugo Claus perdiam tempo com estas questões. O Perec certamente sim.
Talvez hoje já não se possa fazer fazendo sem que esse fazendo carregue o como fazer.
JB
Concordo que não há o momento do pensamento e depois o da escrita: foi isso o que quis dizer quando disse que "o poema pensa". É o mesmo que dizer que o cinema pensa com imagens e sons (alguns deles - ou delas - palavras), ou seja, não é a tradução de um argumento prévio. Dá jeito aqui a palavra "argumento", porque é daqui que vem o ataque da Nouvelle Vague (e antes dos Cahiers) ao cinema de argumentista da qualité française - é ler a "Carta Sobre Rossellini" do Rivette.
A minha dúvida é se o tal romance (ou poema) dito de ideias não pode fazer isso mesmo, até porque não deixa de ter uma escrita que, inevitavelmente, pensa - pode é pensar contra o escritor, mas isso é outra conversa. Isto se calhar não é mais do que a velha questão da inseparabilidade da forma e do conteúdo.
Também concordo que os tempos da inocência já acabaram, e que qualquer escritor/cineasta etc. decente tem de ter um mínimo de consciência dos seus processos e do que o antecede. É aliás, sem querer parecer obcecado, o título do primeiro texto do Rivette: "Já não somos inocentes".
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