quinta-feira, 5 de março de 2009

Alas, poor Wallace

Continuo a tentar perceber como foi possível aquelas duas frases vindas do Inimigo Público entrarem na notícia sobre o romance inacabado de Wallace. As "notícias" do IP partem de uma dupla verosimilhança:
1) "se não aconteceu, podia ter acontecido": a base para a criação das notícias falsas são factos que o leitor já é suposto conhecer; joga-se portanto no campo dos possíveis, levados embora a um extremo que normalmente lhes denuncia a falsidade (e as torna cómicas);
2) são escritas como as outras notícias, usam o mesmo vocabulário, o mesmo estilo, a mesma distribuição convencional da informação.
A uma leitura apressada e descontextualizada (fora do IP, talvez mesmo no Bibliotecário de Babel que a citou), talvez não espante portanto demasiado que o texto de Vítor Elias sobre o suicídio de Wallace parecesse a Sérgio C. Andrade uma fonte legítima: parecia uma notícia, cheirava a notícia, tinha de ser uma notícia.
Mas acho que há qualquer coisa aqui que continua a perturbar, que ultrapassa o riso ou o escândalo perante o jornalista que cometeu um erro (acontece a todos). Aristóteles preferia para a tragédia o verosímil ao verdadeiro: mais valia a mentira verosímil do que a verdade inverosímil. E o que me apetece concluir é que a mesma tentação espreita as notícias - não as do Inimigo Público, todas as notícias. A piada do IP entra na notícia do P2 porque a sua verosimilhança é irresistível, aqueles pormenores encaixam tão perfeitamente na história da vida de David Foster Wallace que têm de ser verdade. São aliás tão "exemplares" que hão-de fechar a notícia em grande estilo. O texto do IP ainda estende a Sérgio C. Andrade uma tábua de salvação: um bilhete de suicídio de 300 páginas, mesmo para quem escreveu romances tão compridos? saltar de cima de um livro em vez de usar um banco? Mas a cegueira do jornalista (a sua hybris) não o deixa olhar para trás. Aceita as 300 páginas e treslê a presença do livro, domesticando-a: o livro deixa de ser o banco para passar a estar em cima do banco, mantendo-se a narrativa psicológica do bloqueio do escritor que não sabia como continuar depois do grande romance (Bastava ter lido o artigo da New Yorker até ao fim para saber que o que havia era uma cadeira, e que o bilhete tinha duas páginas.)
Tudo isto é muito mórbido e triste. Não vale a pena pessoalizar demasiado o caso, parece-me acima de tudo um sintoma. Não do estado do Público ou do jornalismo português, mas do poder que têm as formas fechadas e arrumadas, com aristotélicos princípio, meio e fim, mesmo para essa escrita por definição inacabada e todos os dias recomeçada que é a da imprensa. Nada que não soubéssemos, afinal. Aqui, o jornalista escolheu a coerência da sua pequenina narrativa de 3000 caracteres, escrita a partir de uma leitura apressada (com mais atenção perceberia que a própria New Yorker, tal como a Harper's Bazaar, já tinham publicado capítulos do romance inédito), contra a complexidade do real, essa coisa que escapa por entre as mãos e que é tão difícil de enfiar em meia página de jornal. Terrível tentação, que transformou uma vida numa caricatura e uma morte numa anedota.


[Update: no site do Ípsilon já lá não está a frase sobre as 300 páginas, mas continua a do Infinite Jest em cima do banco. Saiu o mais obviamente excessivo, o que havia de grotesco no texto do IP; ficou o "pormenor significativo" deste psicologismo de pacotilha. Parece que a protagonista do primeiro romance de DFW desconfia que é uma personagem de romance; aqui, DFW foi transformado na personagem de uma notícia mal feita, o que é bem pior.]

1 comentário:

Anónimo disse...

como tu, também li esta pérola e creio que foi no dia seguinte que no público errou, a propósito do artigo, se pedia desculpa pelo "erro involuntário". i beg your pardon?