segunda-feira, 14 de julho de 2008

O centro e a margem no Festival de Edimburgo

Foi à volta do Festival Internacional de Edimburgo (EIF) que cresceu o Fringe, com tal desmesura que o núcleo inicial deixou de estar no centro para ser a margem (mas uma margem com um orçamento substancial). Para alguns, como o crítico do Guardian Michael Billington, o EIF funciona agora um lugar de resistência contra a padronização indiferenciada do Fringe, que foge da experimentação e procura a fórmula segura, quando não abertamente comercial (é preciso não esquecer a posição privilegiada que, neste festival, ocupa a stand-up comedy). Isto é em parte verdade e uma das causas pode estar no “Internacional” do título: uma companhia como os tg STAN, que apresentou o espectáculo Lucia Melts no EIF, dará inevitavelmente à clássica peça de casal (separação, reencontro, discussão, reconciliação) uma volta inesperada, uma respiração lúdica de que o típico realismo britânico mais dificilmente é capaz — e Sara de Roo e Steven van Watermeulen são mesmo extraordinários, leves nas suas personagens como Gena Rowlands e John Cassavetes na peça de Opening Night, de que aliás se fala no texto de Oscar van den Boogaard.
Outro risco que o EIF se pode dar ao luxo de correr passa pela presença de grandes elencos, grandes companhias e encenadores, longos espectáculos (este ano houve mesmo a peça longa por excelência, o Soulier de Satin de Claudel encenado por Olivier Py, com Jeanne Balibar em Prouhèze). Foram alemãs duas das apostas mais aplaudidas deste festival e estão em pólos opostos, de tal forma que é possível construir uma série de pares dicotómicos: adaptação/texto integral, brevidade/duração, imobilidade/fluxo, elegância/crueza, Schaubühne/Berliner Ensemble, Luk Perceval/Peter Zadek.
Perceval pegou na Andrómaca de Racine, reduziu o texto ao que achou ser o osso (sem alexandrinos) e colocou as personagens num friso em cima de um altar (de granito, mármore ou metal, as opiniões dividem-se) rodeado por um mar de garrafas vazias. Da esquerda para a direita, com os movimentos reduzidos ao mínimo, Orestes, Hermione, Pirro, Andrómaca, Pílades. É a orientação do amor não correspondido, se excluirmos o último — observador quase exterior ao drama, manipulador devido à sua relação ambígua com Orestes.
Esta é a tragédia dos filhos dos heróis da guerra de Tróia, que prolongam a guerra por outros meios (sendo a única mãe a personagem que dá o título à peça): Orestes é filho de Agamémnon e Clitemnestra, Hermione de Menelau e Helena, Pirro de Aquiles. Luk Perceval escolheu o amor em detrimento da política e encheu o texto de silêncio (num espectáculo que dura menos de uma hora) e violência contida: só num momento, a fúria suicida de Hermione — cujo desespero tinha sido anunciado mesmo antes da abertura do pano, partindo metodicamente garrafas contra o altar/ilha — a voz exterioriza a emoção, ausente até na fala final de Orestes (“Quero afogar-me no meu sangue”).
O gesto de actualização do mito pode passar por uma trivialização, mas não deixa de fazer lembrar alguma dramaturgia contemporânea: o minimalismo de Jon Fosse (e Perceval encenou Sonho de Outono) e o romantismo desesperado de Sarah Kane (a disposição cénica podia servir para o quarteto de Falta). As dúvidas que o espectáculo suscita têm a ver com a estilização excessiva de tão perfeita, uma depuração tão procurada que se pode tornar estéril e pretensiosa. O melhor antídoto é mesmo o Peer Gynt de Ibsen encenado por Peter Zadek.
A primeira cena faz-se entre mãe e filho no palco vazio, com as luzes da sala acesas. Poucas vezes o palco se encherá de outra coisa que não actores e algumas tralhas velhas, as luzes da sala nunca se apagarão e Uwe Bohm (Peer) e Aase (Angela Winkler) são desde logo assombrosos. Nas primeiras cenas do espectáculo, as da juventude do herói, percebe-se onde Brecht foi procurar o seu “Baal”: a efabulação permanente, a energia, a insaciabilidade sexual, um estado de inocência que pode ser cruel (a noiva raptada em pleno casamento que logo deixa de interessar). Depois vêm os trolls, o comércio de escravos, o harém, a esfinge, o asilo, o naufrágio... Zadek não hesita, como a personagem, em ser rude e desbragado, opta por um estilo de simulada improvisação e não se rala com o mau gosto: a cabana que Peer constrói para a amada Solveig é feita de cadeiras empilhadas, as mesmas que, com uma roda de bicicleta, fazem o barco em plena tempestade; as ondas são os actores rebolando-se no chão e agitando os braços, como se de datadíssimo teatro experimental se tratasse; e o louco que julga ser uma pena de escrever corta o pescoço à boca de cena, quase salpicando os primeiros espectadores. Também o texto monumental de Ibsen é posto à prova, desromanticizado, tratado com ironia sem deixar de ser amado: é assim que, passados anos, Solveig espera ainda Peer mas já não na cabana e sim num prédio de muitos andares (um telão com quadrados a fazer de janelas), e que a cidade se chama agora “Nova Haegstad”; e Peer descasca a simbólica cebola numa roulotte de comes e bebes com menu da Coca-Cola. A cebola, já se sabe, tem muitas camadas e tal como Peer não tem centro. Parece mesmo o Festival de Edimburgo.

[Público, Setembro de 2004]

1 comentário:

Amet disse...

Discordo de tudo: Os objectos cénicos não são "fundamentais", a comédia é rasteira rasteira rasteira, a representação é de uma contenção histérica aka bichos-de-palco, a desconstrucção é pomo old-fashioned (Brecht ou Strehler copiando Piscator são mais up-to-date)i.e. a desromantização de um texto-não-romantico é algo de duvidoso (aliás, segundo ZZtop, a ironia é horrível porque perigosa para quem a executa), as metáforas muitafora, e a lingua é francamente totalitária.
P.s. E o festival de Edimburgo é aquele festival onde os artistas de 3ª classe pagam para 'aparecer' na programação (assim, podem fazer publicidade junto dos seus nativos). O festival de Edimburgo deveria chamar-se o Festival de Ed é um burro. hihihihihih