quinta-feira, 12 de junho de 2008

No Dice 2


I grew up on the Upper East Side, and when I was ten years old I was rich, I was an aristocrat, riding around in taxis, surrounded by comfort, and all I thought about was art and music. Now I'm thirty-six, and all I think about is money.
Wally (Wallace Shawn), My Dinner With André (1981)
Como Wally no filme de Louis Malle (escrito por Wallace Shawn e André Gregory), também os actores de No Dice, nos diálogos telefónicos que deram origem ao espectáculo, sabem que a vida não está fácil em Nova Iorque: audições para voice-over, uma perninha numa série televisiva russa quando se tem sorte; senão há o imobiliário, ou avaliar formulários de empregados do Walmart. [É curioso, e preocupante, que várias das companhias experimentais nova-iorquinas precisem para sobreviver do circuito europeu de festivais, um pouco como o cinema independente americano precisa de dinheiro francês.]
Mas a ponte mais evidente que se pode estabelecer entre My Dinner With André e o espectáculo dos Nature Theater of Oklahoma tem a ver com o lugar central da conversa: pessoas falam umas com as outras e nada mais acontece, só diálogos banais, ditos espirituosos, confissões, teorias. Ali em baixo falei de responsabilidade, guiado pela frase de Godard: porque é que dizemos tanta coisa que não vale a pena? E no filme de Malle há de facto um diagnóstico negativo sobre o estado da conversa em 1981:
André - (...) people are talking in symbols - everyone is sort of floating through this fog of symbols and unconscious feelings: No one says what they're really thinking about; they don't talk to each other; because I think people are really in some sort of state of fear or panic about the world we're living in, but they don't know it, and so you just hear these odd lines of dialogue that seem to come from nowhere (...)
A conversa de Wally e André atravessa e tenta dissipar este nevoeiro de símbolos (numa espécie de diálogo platónico entre dois opostos), mas pensando melhor parece-me que o NTO quis pelo contrário fixá-lo e celebrá-lo, a esse "universal cosmic murmur", sem moralismos. A peça não faz uma avaliação pessimista, ou só de raspão. Trata-se aqui da conversa como jogo, prazer do improviso, da invenção e da música particular de cada discurso, com todas as pausas e repetições e frases por acabar. É por isso que, explicaram os encenadores Pavol Liska e Kelly Copper, os actores usam auscultadores ligados a iPods durante o espectáculo, ouvindo todos a mesma montagem sonora - para que não escape nenhum "Mm hm" desta poesia que foge ao literário, ou às simplificações das rugosidades da fala que são inevitáveis em qualquer memorização ou passagem a escrito. [É interessante como os iPods, o cume da tecnologia, podem ser usados de forma barata e artesanal: no fim da primeira parte há desfasamentos de alguns segundos entre os aparelhos dos vários actores, mas seria muito mais caro fazer com um transmissor e receptores... e toda a gente tem um iPod.]
Quase no final os actores tiram as máscaras (óculos, bigode postiço, cabeleira, chapéu de pirata e de cowboy), abandonam definitivamente os sotaques inverosímeis e falam cada um com o seu espectador, em voz baixa e compenetrada. Mas este não é o momento da sinceridade e da psicologia, aquele em que os actores falam de facto connosco (to us) - o que eles dizem são as "words of encouragement" já ouvidas duas vezes durante o espectáculo, cópia de cópia, um jogo mais: "I think good things are a'comin'". E nós acreditamos, ou fingimos com eles.

P.S.: Disse ali em baixo que havia uma versão longa de 11 horas deste espectáculo, o que é uma fabulosa mentira que todos os jornais repetem e que os próprios criadores não fazem, como pude comprovar, o mínimo esforço para esclarecer (a ideia, mencionada aliás no próprio espectáculo, não deixa por isso de ser um aceno na direcção de Rivette). Vale a pena ler este artigo do New York Times onde o mito se desfaz, que tem além disso outra explicação para o título da peça e que traça ainda um retrato do casal de encenadores, com uma dinâmica muito Straub-Huillet.
P.S.2: Os belgas tg STAN montaram há uns anos My Dinner With André no teatro. Ao contrário do cinema, era muito claro que os espectadores estavam do lado de fora: diz-me quem viu que o cheiro dos vários pratos consumidos pelos dois actores era de chorar, não por mais mas por um bocadinho que fosse.

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