Eu por acaso gosto de polémicas. É que quando não se consegue convencer, há pelo menos a hipótese de perceber em que é que se discorda. O que não é pouco. Começo por registar que Sérgio Lavos, como tem tendência para "psicanalizar" e sabe, "quando [lhe] dizem algo, o que está por trás do que dizem", gostou da concordância do Zé Mário Silva comigo. Por causa dos seus argumentos? Não, porque estava a "concordar com um amigo". Bravo, Freud.
No final do seu texto, acusa-nos (digo "nós" porque SL usa o plural) de elitismo. Segundo ele o que Manuel Gusmão escreve é "de uma lucidez impressionante" (ou melhor, o seu "tom" é que é, mas isso já não sei bem o que quer dizer), mas peca por usar "termos vindos da teoria literária" que tornam os textos demasiado "densos", uma autêntica "floresta barroca", e incapazes de "cativar leitores", especialmente se estes forem "menos exigente[s]". Já antes o "estilo" era considerado "pouco cativante".
Tenho desde logo uma objecção de facto: não me parece que MG abuse da terminologia literária e escreve certamente de maneira diferente no Ípsilon do que numa revista especializada (mas tem de haver um mínimo de vocabulário específico, ou não? se calhar "heterodiegético" é de evitar, mas "narrador" também?). Quanto a cativar, cada um se deixa "prender, escravizar, aliciar, seduzir" (é o que vem no dicionário) pelo que lhe convém. Eu por exemplo adoro uma floresta barroca quando a vejo, mas sei que nunca a encontrarei na escrita de Manuel Gusmão - na de João Bénard da Costa talvez. Já Pedro Mexia é melhor porque é "mais claro", e assim se constrói uma curiosa oposição entre a "clareza" (de PM) e a "lucidez" (de MG). Mas eu que os aproximei (apenas por serem críticos sérios e inteligentes) é que não fui capaz de "elucidar" as dúvidas de Sérgio Lavos. Talvez por ter o Sol de frente.
Estes pecados da escrita de MG não teriam importância, até porque Sérgio Lavos concede que "cada um é livre de escrever para quem quiser"; não fosse dar-se o caso de o espaço nos suplementos culturais ser "apertado". Como é assim, é preciso infelizmente fazer escolhas (duras, difíceis escolhas) - e quando for o Sérgio Lavos a mandar, já sabemos quem são os primeiros a ser dispensados.
Mas aquilo de que gosto mais é mesmo da acusação de elitismo, que só me apetece, infantilmente, devolver. Diz Sérgio Lavos: "acho Manuel Gusmão um dos melhores poetas aparecidos na última década, admiro os seus ensaios e leio sempre os seus textos para o Ipsilon." Portanto para ele não há dificuldades, a floresta transforma-se em jardim. O problema é o dos tais leitores "menos exigentes", os que não lêem a poesia (de baixas tiragens) nem os ensaios nas revistas especializadas (de reduzida circulação) de MG, tudo coisas de que o Sérgio gosta, que admira e a que tem acesso, mas que a gente de pouca exigência não tem que ter de aturar no seu suplemento semanal. Se isto não é elitismo não sei o que seja.
2 comentários:
Correndo o risco de me tornar o Tiago Mendes desta discussão, há duas ou três coisas no teu post, Francisco, que me apetece comentar, pelo menos enquanto não começa o Especial Bikinis no canal da Globo.
Antes de mais digo-te que não acho que tenhas assim tanta razão quanto ao facto de as polémicas mostrarem o que separa as pessoas; as polémicas ampliam essas fracturas e, por vezes, eternizam-nas. Não sei se isso é mau ou bom. Mas é por norma o que acontece.
As polémicas têm, igualmente, o condão de pôr ambas as partes a quererem ganhar uma discussão. No entanto parece-me que os argumentos surgem quase sempre a posteriori de uma escolha, que é quase sempre estética, de classe, emocional, etc.
Neste teu post, por exemplo, acho que foste mauzinho no exercício de desconstrução dos argumentos do Sérgio. Bem sei que uma parte da graça das discussões é, para quem delas gosta, exactamente essa, mas quer-me parecer que exageraste alguma imprecisão argumentativa que existisse no post do Sérgio. É também possível que eu o esteja a defender por ele me ter defendido, e isso (sem ironia) constitui a primeira premissa do elitismo: a definição de um território que selecciona (de forma consciente ou não) os que convêm à nossa causa.
Fundamentalmente interessa-me esta frase do Sérgio: "Importa que o leitor menos exigente perceba o que o crítico quer dizer".
Digamos que: se trocarmos "leitor menos exigente" por "aquele que ainda não é o mais exigente dos leitores mas pode muito bem vir a sê-lo", o Sérgio acaba por estar correcto. (Também não sei o que é um "leitor exigente"; eu leio tudo e continuo a gostar percentualmente de muito pouca coisa; nunca percebi se exijo muito da literatura ou se pura e simplesmente sou preconceituoso.)
Não quero dizer que tem de se dar ao leitor aquilo que ele quer (estou aliás frontalmente contra essa tonteria; é impossível saber o que "o leitor", essa entidade nebulosa, quer). Apenas que é necessário um esforço de clareza por parte de quem escreve nos jornais. Qual a linha e onde a traçar? Muito difícil de dizer. Todos os textos de cinema incluem a palavra "raccord". O leitor saberá o que é "raccord"? Bem, a tese actual é que não se deve escrever uma palavra que o dito leitor não conheça. Eu acho que não faz mal nenhum ao leitor ir descobrir o que é. Narrador parece-me óbvio: quem não sabe o que é um narrador não lê o Público. Digo eu, que consta que nem sei o que ombro quer dizer.
(Ainda acabo a dar razão ao Rui Manuel Amaral e a atacar os meus textos.)
Escrevo esta banalidade porque me parece que por vezes quem está por fora dos mecanismos dos jornais, e vitupera contra uma suposta mediocridade geral dos media, não tem bem noção de toda a complexidade de circunstâncias e mecanismos que acabam por produzir aquele conjunto de cabeçalhos, escolhas, palavras.
E escrevo isto porque me parece que por vezes é mais fácil às pessoas catalogarem (este enquanto académico, aquele enquanto leitor-leitor, aqueloutro etc), do que lidarem com todos os objectos (e pessoas) por igual. Até hoje me espanta que se trate respeitosamente a literatura. Adoro-a, mas acho-a uma velhaca que não merece o meu respeito e deve ser tratada ao pontapé.
O meu primeiro post ia nesse sentido: mostrar categorizações tão brutas por forma a demonstrar que muito facilmente nós caímos no exercício de ler o mundo por categorias/axiomas/preconceitos quando pensamos que estamos a exercer um juízo de superior lucidez.
Bem, lá deixei aqui novamente um lençol. Ainda dou por mim a trabalhar na indústria têxtil. Vou ver bikinis.
Abraço,
JB
João, de facto nada de mais diferente de um lençol do que um bikini.
O teu comentário é perfeitamente sensato, mais do que o meu post, que antes de ser mauzinho é intempestivo (e não tenho especial gosto nisto, até porque já lhe provei o veneno). Acho que na nossa troca de comentários já tínhamos chegado a uma zona de entendimento mais interessante do que aquela a que o post do Sérgio me faz retroceder.
É óbvio que uma crítica tem de imaginar um leitor que pode não saber tanto quanto quem escreve, e que é difícil de traçar a tal fronteira entre usar "narrador" e "heterodiegético" - e explicas bem esse dilema. O meu problema com o post do Sérgio é que ele parte do princípio de que o Gusmão não faz esse esforço e ao mesmo tempo que lhe chama elitista coloca-se a si próprio no grupo dos que o lêem e admiram. Ou seja, fala em nome dos ignorantes ao mesmo tempo que se exclui desse grupo. Esse é exactamente o elitismo praticado por VPVs, Pachecos, Barretos e Mónicas, que vão ao teatro em Londres mas cá são contra os subsídios; que aplaudem o Rui Rio desde que não lhes mexam na biblioteca e na colecção de discos de música clássica.
Simplificando: eu se leio um texto que não percebo parto do princípio que a culpa é minha; o Sérgio percebe o texto mas culpa quem escreve em nome de quem não percebeu. Quando disse que as polémicas clarificam as discordâncias era nisto que estava a pensar.
Abraços
Francisco
(ia agora responder-te ali em baixo, deixa-me ver se ainda tenho alguma coisa de jeito para dizer)
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