Caro Sérgio,
0. Obrigado pela resposta.
1. O João Bonifácio tem todo o direito de defender a sua escrita e a maneira como faz crítica. Não disse nada sobre isso, nem quero propor hierarquias entre a crítica literária e a musical (que conheço pouco) - aliás, se elas existem, a julgar pelo espaço ocupado nos jornais (mais uma vez, o Ípsilon veio equilibrar um pouco as coisas), parecem privilegiar a segunda. Eu ainda nem sequer ouvi os tais The National, nem nenhum outro disco do ano, portanto não vou ser certamente eu a dizer o que é o pop/rock e o que a sua crítica deveria ser. Se tenho alguma razão de queixa, tem precisamente a ver com o entusiasmo: é sempre tudo tão genial que a gente desconfia.
2. Não sei se é sarcasmo, mas a violência adjectival é tão excessiva (a "verborreia" tem de ser "inenarrável", a "referencialidade" é "abusiva", os poetas são "maus", o "gáudio" é "onanístico" e até o salão tem de ser "pequeno") que só posso ler a descrição como um ataque directo à escrita de Manuel Gusmão que vai muito para lá do mero exemplo. Há tão pouca gente de jeito a escrever nos jornais sobre livros (Gusmão, Mexia, António Guerreiro e, sim, Joaquim Manuel Magalhães... mais algum?) que escolher um deles (e este entre todos) para atacar só fica mal ao JB.
3. Manuel Gusmão não é só bom poeta, é um ensaísta e professor brilhante. Poder lê-lo a escrever sobre um volume de Benjamin ou o Debaixo do Vulcão é um luxo absoluto. Pouco me importa se é para poucos (se é, a culpa dos "unhappy many" - a pior acusação deve ser mesmo a pequenez do salão), se destoa do resto do suplemento ou se ajuda a vender livros. A crítica devia ser muito mais do que isso, e às vezes, para nossa sorte, é.
4. Não vejo assim tantas diferenças entre MG e Pedro Mexia, para além das mais óbvias (geracionais e ideológicas). São ambos críticos inteligentes, sérios e que falam de facto dos objectos em causa (compara-se a crítica de MG ao livro do Blake com a que saiu na semana anterior no Expresso, que podia ser uma entrada de dicionário sobre o autor, sem qualquer relação com a edição da Antígona; ou leia-se o texto de Francisco Luís Parreira sobre Stevenson, que é um ensaio interessante sobre a novela mas nada diz sobre a tradução e os outros contos que o volume da Assírio inclui). Discordo completamente de que a escrita de MG seja nebulosa ou que padeça de "rodriguinhos de subjectividade". É até, imagine-se, capaz de "contar a história", até porque à paráfrase ninguém foge. Não é apenas bela ("este livro é um banquete e um jardim" - cito de cor), é uma escrita tão límpida quanto a complexidade (variável) do pensamento permite. É mesmo uma escrita que clarifica - leia-se o seu "Manifesto" publicado no Público do último domingo. Como diz Brecht sobre o comunismo, "É a coisa simples / Difícil de fazer."
[não falei de entusiasmos fingidos, disse que o Sérgio tinha reproduzido (i. e. transcrito no seu blogue) um comentário de JB que, pelos vistos, o tinha entusiasmado]
5 comentários:
Boa!
Dá-lhes que esta escumalha não enxerga a medida das suas múltiplas ignorâncias e julga-se com o direito (e o saber) para de tudo falar, enferrujando tudo o que não percebem!!
MST
Eu dou-te de bom grado o nome de dois tipos que escrevem muito bem sobre literatura: Mário Santos e Luís Miguel Queirós, ambos no Público.
Só para aumentar o tamanho (e qualidade) do salão. Embora estes não frequentem o salão.
JB
Ok, João, mas é outro campeonato.
FF
Desconcordo, Francisco. É e não é. É uma escrita não académica e de gente formada, sobretudo, na leitura? É. Mas é, nitidamente, formada em imensa leitura. E numa rara capacidade humana de perceber o cerne de um livro e do que pode ser transmitido no escasso espaço de 6000 caracteres.
Não é uma arte fácil. E sei o que estou a dizer, por experiência própria: venho da filosofia e há atractivos (e vantagens e defeitos)tanto numa escrita sustentada em conceitos (e no plano de imanência que os enforma, como diria o Deleuze), como num olhar aparentemente mais trivial. Quando comecei a escrever em jornais era-me difícil aderir ao imediatismo.
Acontece que esse olhar trivial parece-me por vezes (posso estar errado nisto) mais próximo da própria ambição de um escritor que, o mais das vezes, não tem a bagagem conceptual de um académico. E não se pense que os tipos que eu mencionei não têm uma carga conceptual forte: eles não lêem apenas romance; leram igualmente (ainda que não seguindo uma ortodoxia ensaística ou um corpo axiomático pré-definido) muito ensaio. Obtive mais do pensamento, por exemplo, do Eduardo Lourenço em conversa com o Queirós (que é um tremendo leitor) do que com vários professores meus (culpa minha, certamente).
Há uma constante necessidade da academia de mostrar que está à altura das obras e por vezes parece-me que há escritores que escrevem para a academia a seguindo x códigos (o que me parece lamentável). (Tenho a impressão que a grande criação é um pouco mais nebulosa que isto, mas essa seria uma longa discussão.) Na intersecção desses dois grupos forma-se aquilo a que chamei (sou o enésimo a fazê-lo) o salão. E esse salão reage epidermicamente a tudo o que lhe parece interferência da plebe no seu universo.
Ora, Francisco, diz-nos a História que a luta de classes (porque, no fundo, era isso que estava em fundo no post do rui manuel amaral) não é óbvia e a dialéctica é retorcida. A aristocracia detestava a burguesia, mas sem o dinheiro desta não havia ciência para ninguém.
Quero com isto dizer que há vantagens nos dois mundos, mas só um leva a proverbial porradinha dos aspirantes a intelectuais.
Eu rio-me um bocado com tudo isto, porque gosto de apreciar o melhor dos dois mundos.
Abraço.
JB
João,
Só para clarificar a questão dos campeonatos: não estava a opor a academia à escrita trivial dos jornais. Disso falou-se naquela polémica de há uns anos, e teve a sua graça. Estava a dizer uma coisa muito mais simples: o Gusmão é alguém que produz pensamento, não é "só" (todas as aspas neste "só") um bom crítico literário. Não ponho em causa a eficácia e a competência dos nomes que citaste, não estou a comparar formações académicas nem quero generalizar o que disse sobre o Gusmão, até porque nas universidades há gente muito pior do que a que escreve nos jornais.
Sei que é difícil fazer caber tudo nos tais 6000 caracteres, até porque já experimentei, só acho que é uma sorte poder ver alguém com as capacidades do Gusmão a fazer esse exercício de vez em quando. Mas não tenho nada contra o imediatismo (senão não gostava de blogues), e gosto nos jornais do lado efémero e feito à pressa - e defendo essa imperfeição, esse "em cima do joelho", que pode ser mais produtiva do que muitas teses de doutoramento.
Apontas para uma discussão interessante quando dizes que o olhar trivial pode estar mais próximo da ambição do escritor; depende dos escritores, mas duvido que seja a sua opinião (mesmo quando é um excelente escritor) aquilo que valida a crítica. Acho que há esse lado de conversa, em que o crítico dialoga com a obra, mas esse diálogo, por mais estimulante que se venha a revelar, pode perfeitamente passar ao lado do escritor. Também não é surpresa, passamos a maior parte do tempo a falar sozinhos.
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