quarta-feira, 19 de dezembro de 2007

Oil ain't all, JR

[Este é mais um daqueles posts chatos sobre ortografia, por isso vou começá-lo com a expressão "Tem muita graça".]
Tem muita graça andarmos para aqui a brincarmos aos linguistas, sem percebermos disto grande coisa (mas como este raio de língua que falamos e escrevemos é demasiado importante para ser deixado aos cientistas, e ainda mais aos políticos, não temos alternativa).
Ainda hoje Vital Moreira (pró-acordo) escreve no Público:

Tampouco tem razão o argumento de que algumas alterações, como a eliminação das consoantes mudas (de "projecto" para "projeto", por exemplo), cria o o risco de provocar uma mudança na respectiva pronúncia, ensurdecendo a vogal associada, pela simples razão de que a presença dessas consoantes não tem impedido esse resultado entre nós, como sucede hoje com a pronúncia das palavras "actual", "actriz", etc., normalmente pronunciadas como "âtual" e "âtriz".

Ora precisamente a alteração da grafia de "projecto" não provoca nenhum ensurdecimento da vogal, pelo simples facto de que a vogal é tónica... O que talvez aconteça é o seu fechamento, de um "e" como em "pé" (vogal semi-aberta) para um "e" como em "você" (vogal semi-fechada). Mas "ensurdecimento" soa a conversa científica, de quem sabe do que fala. Dá estilo. Depois é ver como cada um pensa numa ou duas palavritas para exemplos e contra-exemplos (como eu no post abaixo), sem noção nenhuma da língua como um todo. No texto de Vital Moreira, parece que o pobre do "c" mudo não conseguiu evitar o "ensurdecimento" (na verdade, de novo fechamento) do "a" em "actual" e "actriz" - quando é óbvio que ali a consoante cumpre uma função que não é fonética, aproximando graficamente estas palavras de outras como "acto", "actor", "acção", etc. (todas com a vogal aberta) e tornando claro o seu parentesco.
Leia-se o que diz a Breve Gramática do Português Contemporâneo de Lindley Cintra e Celso Cunha sobre estas famigeradas consoantes:

[P]ersiste ainda uma importante diferença entre os sistemas ortográficos oficialmente adoptados em Portugal e no Brasil: o tratamento das chamadas "consoantes mudas".
No Brasil, por disposição do Formulário Ortográfico de 1943, as consoantes etimológicas finais de sílaba (implosivas), quando não articuladas - ou seja, quando mudas - deixaram de se escrever. Em Portugal, no entanto, em conformidade com o texto do Acordo de 1945, continuaram a ser grafadas sempre que se seguem às vogais átonas a (aberta), e ou o (semi-abertas), como forma de indicar a abertura dessas vogais. Por uma razão de coerência, mantêm-se tais consoantes em sílaba tónica nas palavras pertencentes à mesma família ou flexão.
Esta forma de distinguir, no português europeu, as pretónicas abertas ou semi-abertas das reduzidas não se justifica no português do Brasil, em cuja pronúncia-padrão não há pretónicas reduzidas [...]. (pp. 55-56)

Quer isto dizer que a diferença gráfica a este respeito entre Portugal e Brasil assenta nas pronúncias respectivas, não se tratando de opor os conservadores portugueses nostálgicos da etimologia aos progressistas brasileiros entusiastas da fonética. O tal Acordo de 1945 acabou com uma série de consoantes etimológicas mudas e só ficaram precisamente as que cumpriam uma razão fonética! (e mais algumas, por questões de coerência - por exemplo entre "optimista", onde o "p" abre a vogal", e "óptimo", onde isso já acontece por causa da acentuação.)
Ter uma perfeita adequação fonética entre a ortografia e a fala é um disparate - para isso existe o alfabeto fonético, com um sinal gráfico para cada som (e vice-versa), que permite representar dialectos, sociolectos, idiolectos, etc. A ortografia tem de ter um nível suficiente de abstracção - e portanto mais ridículo se torna este acordo, que permite por exemplo que no mesmo país se aceite "característica" e "caraterística" conforme o "c" seja ou não pronunciado pelo falante, numa óbvia confusão entre a sistematização da língua ("langue") e os enunciados possíveis ("parole").
Em resumo: a não ser para ajudar ao negócio dos senhores editores de livros escolares (aí tanto os portugueses como os brasileiros estão a fazer pela vida), não percebo em que é que o gasto brutal de dinheiro e esforço que este acordo implica vai contribuir para melhorar a comunicação entre os luso-países. A minha dificuldade em ler o Guimarães Rosa não passa propriamente pela grafia, e basta ver esta lista de diferenças gráficas entre o British English e o American English para perceber que isto não é um problema. Parece-me que a questão-base não é se Portugal é uma colónia linguística do Brasil ou vice-versa: trata-se sim de saber quem é que - ao nível da edição, mais nenhum tráfico para além desse desta vez - vai colonizar África.
Filipe, quanto ao "porque" e ao "por que", deixo-te este artigo do Ciberdúvidas (e há lá mais uma série deles sobre o assunto com que te podes divertir). Se me explicares as regras brasileiras posso, com as minhas parcas capacidades, tentar perceber que sentido fazem, mas o que não percebo é porque (olha, era aqui que eles se pudessem metiam o espaço) as segue o Público, muitas vezes com cómicos casos de hipercorrecção, separando todos os "porques" que lhe aparecem à frente.

P.S. Também para o Filipe: Porque não tinha aqui à frente nenhum livro que chegasse à pág. 161 (ok, tinha um, mas na altura não me apeteceu escrever a frase que calhou), não te respondi à corrente que simpaticamente me endereçaste. Quis o acaso que o recentemente devolvido (A)tentados de Martin Crimp (na tradução de Paulo Eduardo Carvalho) viesse aterrar hoje na minha secretária, portanto aqui vai a 5ª frase da pág. 161: "Porque, há que reconhecê-lo, ela preocupa-se."

4 comentários:

Filipa Rosário disse...

frazão, revês a minha tese, quando ela existir? revês?

Anónimo disse...

Agora fiquei mesmo com saudades tuas. Raios! E das discussões no cubículo do bar novo sobre a abertura ou não do a inicial de amanhã.
Não gosto de me sentir lamechas.

Anónimo disse...

Btw, sempre achei que juntar "raio" ajudava a distinguir por ques de porques... Diria que também discutimos o assunto, há quase dez anos.

Ricardo Miguel Costa disse...

este é dos melhores blogues que visitei ultimamente.
parabéns