terça-feira, 30 de setembro de 2008

Inserts e passing-shots

Pergunto-me mesmo se os anos oitenta, cinematograficamente tão ocos, não tiveram como verdadeiro cinema e como heróis sedutores os Borg, Connors, McEnroe e Lendl, os únicos que souberam destilar o tempo e que deram lições de ver a uma geração inteira. Fiquei sempre surpreendido quando amigos meus ficavam surpreendidos com a minha capacidade de escrever sobre o ténis, como se lhes quisesse mal por não compreenderem que se trata absolutamente da mesma coisa que o cinema, ao menos o velho cinema, o da mise en scène, da topografia. Não era preciso empurrarem-me muito para que encontrasse passing-shots em Fritz Lang e inserts em Miroslav Mecir.
Serge Daney, Persévérance

domingo, 28 de setembro de 2008

Sanduíche 2


Outra:
L'Analyse des films: le champ aveugle le fantôme de l'opéra; devant la recrudescence des vols de sac à main, l'homme ordinaire du cinéma voyage au bout de la nuit.

Sanduíche


Uma resposta a este desafio:
Comente o seguinte texto: "António, um rapaz de Lisboa, prometeu deixar a vida antes que a noite venha. O fim? As histórias não têm fim."

sábado, 20 de setembro de 2008

Descrever

Aprendia-se na escola a distinção entre a narração ou "momentos de avanço", aqueles em que aconteciam e se faziam coisas, e a descrição ou "momentos de pausa", onde a acção parava e ficávamos a olhar para a paisagem ou para o interior de uma sala. Era fácil de distinguir, havia até aqueles que ao ler Os Maias se gabavam de saltar as descrições, ou outros como eu que ao ler o Cão dos Baskervilles as sofriam com maior ou menor esforço e sacrifício e chegavam ao fim com uma leve sensação de conquista - precisamente aquelas descrições de que fala Ruth Rendell com admiração no artigo que o Zé Mário linkou.
Claro que mais tarde se percebe que as coisas não são assim tão simples, isto sem pôr em causa que elas existem - se não existissem não se podiam saltar. Porque num livro tudo significa (nada está por acaso), pode-se olhar para as descrições como a continuação da narração por outros meios. Quando, no início do conto de Poe, se descreve a fachada da Casa de Usher, já se está a contar a história. E a inversa também é verdadeira: uma acção não é transparente, é preciso seleccionar, escolher para onde olhar, traduzi-la ou inventá-la usando umas palavras e não outras. A escrita é uma maneira de representar - dito de outro modo, escrever é descrever. É por isso que uma colectânea de críticas literárias de Pasolini se chama Descrições de descrições.
Tudo isto tem a ver com dois escritores que, se não fossem os blogues, provavelmente teria levado muito mais tempo a descobrir - a chatice é isto acontecer quando morrem, mas isso é outra conversa. Foi graças a este texto do Rui Tavares que ouvi pela primeira vez falar de Sebald, numa altura em que, julgo, ainda não havia nenhum livro seu editado em Portugal. E agora, para minha vergonha, confesso publicamente que não fazia ideia de quem era David Foster Wallace antes de ler isto (logo adivinhando que o Rogério o conheceria de gingeira).
Voltando às descrições de coisas a acontecerem ou a fazerem-se, talvez ali em cima me tenha apressado: dei a entender que antes da escrita há algo que já lá estava, uma realidade prévia à linguagem. Foi por facilidade. Mas é uma facilidade que é um efeito da própria escrita, ela cria uma ilusão (de óptica) que nos faz supor um mundo onde só há palavras. Nalguns casos, aparentemente mais simples, as coisas estavam mesmo lá - como no cinema, diz-nos Bazin ao teorizar-lhe a ontologia. Ou numa reportagem televisiva, ou uma transmissão desportiva em directo. O que esteve (ou está) ali, de carne e osso, passa a estar aqui, no ecrã, representado. E há então uma operação possível, singela no seu artesanato (não é a arte de criar mundos) que consiste em traduzir essas imagens em palavras: descrever as descrições. Não há nada mais difícil. Quando isto é feito pelos melhores, este encadear de frases objectivas, instrumentais, quase só nomes e verbos e poucos adjectivos, tem qualquer coisa de jubilatório. É isso que se sente ao ler a descrição feita por Rivette de Peaux de Vaches, que há tempos transcrevi aqui. E é isso que se sente ao ler como David Foster Wallace descreve uma jogada entre Federer e Agassi, no excerto judiciosamente postado pelo Zé Mário. Uma modesta alegria. Não vi nem a cena nem a jogada: mas li-as. Ténis e cinema? É melhor parar por aqui, antes de ir buscar o Serge Daney à estante.

Goldoni

Carlo Goldoni
Peças Escolhidas I
Livros Cotovia, 2008,
trad. de Alessandra Balsamo, Jorge Silva Melo e José Colaço Barreiros,
288 págs.

Digressão, tradução/adaptação, produção: este primeiro de três volumes do teatro escolhido de Goldoni tem na diversidade de proveniência das traduções um gráfico expressivo da presença do dramaturgo em Portugal. O Servidor de dois amos parte da legendagem do espectáculo de Strehler que esteve em Almada em 1999 (eco das companhias italianas que no séc. XVIII trouxeram as suas peças na bagagem); A Estalajadeira, que era para ter sido o segundo espectáculo da Cornucópia, recupera a “riqueza teatral” de uma língua servindo-se de folhetos de cordel onde Goldoni foi amplamente traduzido “ao gosto português” (e tinha sido já publicada em 1973 na melhor colecção de teatro que por cá houve, a da Estampa/Seara Nova); finalmente, O Campiello é memória do espectáculo de 1997 da Malaposta em que o texto (perdendo o verso livre) foi estreado. As três peças permitem entrever como se fez a reforma teatral de Goldoni, da commedia dell’arte ao primeiro realismo burguês. Descontente com o resultado de produções feitas depois da estreia, Goldoni fixa em O Servidor de dois amos o que estava apenas esboçado, as improvisações dos primeiros actores, assinando-lhes a sentença de morte ao mesmo tempo que as faz perdurar. Perde-se o imprevisto da commedia, mas também a sua já excessiva codificação (o Teatro); ganha-se a possibilidade de abordar novas realidades (o Mundo), a “brisa nova” de que fala Silva Melo na introdução. A Estalajadeira faz isto mesmo: se a técnica é a da comédia (das mais perfeitas na sua relojoaria) há agora em cena ferros de engomar e chocolate quente, e a força de um papel feminino que a peça só de forma ambígua e convencional condena. Já o admirável Campiello, na rarefacção da sua intriga, tem por protagonista coral um bairro onde até a violência doméstica passa com a melancolia de um fim de festa.

[Expresso-Actual, 06.09.08]