quinta-feira, 21 de agosto de 2008

Guilty as charged

"Uma curiosidade, certamente apelativa a corações fracos", disse o João Bonifácio d' O Cheiro da Índia na crítica que saiu no último Ípsilon.

Página 23

Basta ver a maneira que têm de dizer sim. Em vez de concordarem como nós levantando e baixando a cabeça, abanam-na um pouco como nós quando dizemos que não: mas a diferença do gesto é, apesar disso, enorme. O seu não que significa sim consiste num fazer ondular a cabeça (a sua cabeça morena e ondulada com a sua pobre pele negra, que é a cor mais bela que pode ter uma pele) com brandura, num gesto que é ao mesmo tempo doce – "Pobre de mim, digo que sim mas não sei se é possível" – e astuto – "Porque não?" –, amedrontado – "É tão difícil" – e ao mesmo tempo encantador: "Sou todo teu". A cabeça sobe e desce, como que levemente desprendida do pescoço, e os ombros, também eles, ondeiam um pouco, com um gesto de rapariga que vence o pudor, que se torna afectuosa. (…) A sua religião está nesse gesto.
Pasolini, O cheiro da Índia

Enviados especiais

A mesma viagem, dois escritores italianos com pessoalíssimas visões que se completam sobre a irrealidade indiana

Pier Paolo Pasolini
O Cheiro da Índia
90 Graus, 2008,
trad. Miguel Serras Pereira,
89 págs.

Alberto Moravia
Uma Ideia da Índia
Tinta da China, 2008,
trad. Margarida Periquito,
142 págs.

No final de 1960, os escritores e amigos Moravia (acompanhado da mulher, Elsa Morante) e Pasolini são enviados por dois jornais concorrentes de Milão, o Corriere della Sera e Il Giorno, numa viagem de seis semanas à Índia, a pretexto do centenário do poeta Tagore. Cada um escreveu uma série de artigos, publicados em 61 e reunidos em livro em 62. Era um tempo em que o jornalismo podia ser feito por gente assim. Mas nem tudo são tristezas: foi para acontecimentos como a publicação quase simultânea dos dois volumes em Portugal que se inventou a expressão “feliz coincidência”.
Desenha-se um mundo em cada um destes livros. E quase meio século depois, com a população da Índia a ter mais de duplicado, o que menos importa é averiguar da veracidade dos relatos ou da justeza das teorias. Perdido o referente empírico, fica a representação da “experiência” (palavra que ambos usam), que selecciona, reorganiza, imagina, interpreta e se basta a si própria. São então inventadas, as Índias de Moravia e Pasolini. Mas têm pontos de contacto inevitáveis, razão de encantamento para o leitor que os descobre como quem surpreende noutro romance uma personagem que já conhecia: a monotonia da paisagem indiana; os chacais que ladram à noite junto da “rest house” em Chattarpur; o asceta que não agradece o cigarro oferecido em Khajurah; as piras funerárias em Benares onde os dois escritores se podem aquecer, como que entre amigos, a morte tão próxima e serena.
Claro que basta olhar para os títulos para distinguir as estratégias de Moravia e Pasolini: era difícil encontrar palavras mais antitéticas do que “cheiro” e “ideia”. De facto Moravia é mais teorizador, por vezes quase escolar e com bibliografia à mão, explicando o sistema de castas, as causas da pobreza, a filosofia religiosa ou a especificidade do colonialismo inglês, em capítulos bem arrumados. E a “experiência que quer ser exclusiva” de Pasolini é mais lírica e extremada, deambulatória e associativa. Permite-se confundir o touro Nandi do templo de Thanjavar com uma vaca, descartar-se (“Não sei bem o que é a religião indiana: leiam os artigos do meu maravilhoso companheiro de viagem, do Moravia”), ler na diagonal um livro cujo título não era bem aquele (“a um primeiro relance, apesar do meu mísero conhecimento do inglês, pareceu-me notável. Moravia leu-o depois e achou-o bom”). Mas na Introdução, o primeiro exemplo de que se socorre Moravia para explicar a religião (“a religião é a Índia e a Índia é a religião”) é precisamente o “cheiro adocicado, penetrante, fétido e nauseabundo, como o da sânie, de flores putrefactas ou de fruta podre, que se sente nas vielas de Benares”; e em Pasolini faz-se o percurso inverso, do particular para o geral: “É esse cheiro que, tornando-se pouco a pouco uma entidade física quase animada, parece interromper o curso normal da vida nos corpos dos indianos.” Moravia é capaz de encontrar no acidental o gesto que alegoriza o seu argumento, como, para figurar a simbiótica colonização inglesa, os braços enroscados do “jovem marinheiro quase negro” e da americana ruiva que quase caía ao mar. Ou de, num templo abandonado com uma estátua de Xiva vista à luz de uma lamparina, pressentir a alegoria onde o sentido escapa: “O contraste entre esta letargia nas trevas e a luz resplandecente do sol tropical sobre o mar em perpétuo movimento é tão forte que parece impossível que seja casual”. Estas (quase) dialécticas imagens “fazem quadro”, mesmo fugazes e contra um fundo irreal que “um vento mais forte poderia ir levando pouco a pouco”. Também em Pasolini esse fundo é instável, um inferno aquático de pobreza e fome: “De cada vez que na Índia deixamos alguém, temos a impressão de estar a deixar um moribundo prestes a afogar-se por entre os destroços de um naufrágio.” Só que aqui até as epifanias são movimento ondulante, música. É ler a descrição da “maneira de os indianos dizerem sim”, tão bela e comovente que vale o livro: é na página 23 e a “sua religião está nesse gesto”.


A freira e o intelectual
Como nota Carlos Vaz Marques no Prefácio a Moravia, nem Morante nem Pasolini são referidos ao longo de Uma Ideia da Índia (embora se possam adivinhar num “nós” frequente e camarada e raramente majestático). Pasolini, pelo contrário, refere os nomes dos companheiros de viagem e das personagens que encontra e que assim ganham um rosto. Se Moravia, o escritor famoso até na Índia (graças aos Penguin Books, diz Pasolini), concede um capítulo ao seu encontro com Nehru, o primeiro-ministro intelectual e obreiro da independência, em Pasolini (que não tem só elogios a fazer a Nehru) quem tem direito a um capítulo é Revi, rapaz de Cochim, “o único alegre” num país onde a alegria é substituída por doçura. É ainda nesse capítulo que se narra o encontro em Calcutá com uma “Irmã Teresa” que ainda não é Madre: “nas feições a bondade verdadeira, essa que é descrita por Proust na velha criada Françoise”…

[Expresso-Actual, 15.08.08]