[Seguindo a jurisprudência estabelecida por alguns outros bloggers, aqui fica a recensão que escrevi para o último Actual do Expresso (07.06.08)]
Relâmpagos ao longe nesta nova tradução de uma novela clássica
Ivan Turguénev
O Primeiro Amor
Relógio d’Água, 2008,
trad. Nina Guerra e Filipe Guerra,
112 págs.
Depois do jantar já só restam o anfitrião e dois convidados. Combinam contar a “história do seu primeiro amor”, mas só o de Vladímir Petróvitch Voldemar “não foi nada vulgar”. É assim que Turguénev prepara os leitores da novela de 1860 O Primeiro Amor. A história de amor adolescente surge enquadrada pelos mais de vinte anos decorridos desde aquele Verão de 1833. E há outra mediação, não é a transcrição do relato de Vladímir Petróvitch naquela noite que leremos: este será adiado por duas semanas para poder ser escrito, de modo a que não saia “curto e seco, ou então longo e falso”, numa recusa da ficção de oralidade que ao mesmo tempo premedita a própria extensão da novela – entre o conto e o romance.
Vladímir, de 16 anos, apaixona-se por Zinaída, de 21, que vem morar com a mãe, uma princesa arruinada, para o anexo vizinho à casa de campo dos Voldemar. No extraordinário capítulo em que o narrador se dá conta do novo sentimento, entre uma festa inebriante e a noite passada em claro, até a meteorologia colabora. Mas o texto subverte a analogia romântica entre espírito e natureza e não nos dá uma tempestade desabando em som e fúria sobre o protagonista. Esta é “muito longínqua, nem sequer se ouviam os trovões, apenas se acendiam no céu a cada instante os relâmpagos baços, compridos, como que ramificados: nem tanto se acendiam como tremeluziam e tremulavam como a asa de uma ave moribunda.” O cliché recua até à linha do horizonte, faz-se filme mudo no ecrã da janela e culmina num prenúncio de morte.
A novela depende em absoluto do ponto de vista de Vladímir. E a beleza do texto reside na falta de perspicácia do narrador, que só no final percebe por quem Zinaída se apaixonou e muitas vezes se diz envolto em brumas e nevoeiros metafóricos, ao passo que ele próprio é de uma transparente inocência (“O meu poder de observação não enxergava um palmo adiante do nariz, e os esforços que fazia para esconder os meus sentimentos não enganavam pelos vistos ninguém”). O Primeiro Amor é este desequilíbrio magistral entre a opacidade do mundo e um sujeito que já não é aquele a quem “transparece na cara tudo o que lhe vai na alma”.
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