[É uma chatice: concordo com tudo o que o Rui Tavares escreve, menos quando ele escreve sobre o acordo... Aqui fica o comentário que deixei no cinco dias à crónica do Público de ontem.]
Caro Rui,
Também acho que estás enganado quanto à terminação "eia". Confiando na minha (falível) memória auditiva, parece-me que há em Portugal pelo menos três formas de concretizar foneticamente essa sequência, sendo que em nenhuma delas há vogais abertas ou semi-abertas: "êia" (no Norte), "âia" (em Lisboa) e "êa" (no Alentejo). Mas dentro de cada variante regional, as palavras ideia, assembleia, feia, meia, areia e europeia são sempre pronunciadas com a mesma terminação. O que quer dizer que em Portugal, independentemente das suas concretizações fonéticas, há no nível fonológico apenas um ditongo, que na escrita representamos convencionalmente por "ei". Já no Brasil há dois fonemas, dois ditongos nesta lista de palavras: "êi" (em feia, meia, areia) e "éi" (em idéia, assembléia, européia). Ou seja, no Brasil e ao contrário de Portugal é possível imaginar palavras (pares mínimos) que se distinguem apenas por uma ter o fonema "ei" e outra o fonema "éi" (e não é preciso imaginar apenas: "aréia" é o feminino de "aréu"). Portanto antes do acordo temos: em Portugal, um fonema, uma grafia; no Brasil, dois fonemas, duas grafias. Não admira portanto que os brasileiros resistam a uma perda da adequação da escrita à fonética.
Também acho que a Manuela tem toda a razão ao pôr em causa a ingenuidade do "se desejo continuar a escrevê-lo, devo pronunciá-lo". É óbvio que se eu passar a pronunciar as consoantes mudas de acção, correcto e espectáculo vou apenas afastar-me da pronúncia-padrão, sem com isso ter o bónus de poder conservá-las na escrita... Já quanto às grafias duplas previstas no acordo veremos: no par recepção/receção, que antes do acordo se escrevia da mesma maneira, certamente que apenas a primeira forma será aceitável no Brasil e apenas a segunda em Portugal; quanto a casos como característica/caraterística admito que possa ficar ao critério de cada um, mas não estou a ver os revisores dos jornais e das editoras a telefonarem aos autores para os ouvirem a dizer determinadas palavras - caso aliás mais complicado para as reedições de autores mortos.
Não duvidando eu da bondade da tua posição ao veres vantagens neste acordo, o problema desta tua afirmação é a ideologia que lhe subjaz, a de uma crença ingénua na capacidade individual de usar e mudar a língua, falando e escrevendo como queremos - acho que é o Barthes que nos lembra que a linguagem é totalitária (a literatura é que pode ser uma forma de resistência). Tu próprio dás um exemplo desta máquina implacável a funcionar: bem podes na tua liberdade escrever "estado" (logo a escolha da palavra é sintomática, podias ter optado por "primavera"!) que te corrigem para "Estado". Este individualismo liberal que preconizas faz-me lembrar uma citação da Eduarda Dionísio:
"Pouco tempo antes, [António-Pedro Vasconcelos] defendia na televisão, depois da emissão de uma Casablanca a cores, versão aggiornada que a técnica e o marketing coloriram, que quem quisesse podia vê-la a preto e branco: bastava rodar um botão... Tinhas percebido nessa noite o liberalismo em toda a sua dimensão." (Títulos, Acções, Obrigações, p. 72)
Adenda de 26/7:
Acabei de escrever [mais] um comentário quilométrico [ao post do Rui] que se perdeu no éter quando carreguei no submit. Nele dizia:
1. que na minha contribuição anterior acertei por acaso na proposta de Lindley Cintra para os dialectos portugueses quanto à distribuição do ditongo "ei" (conservação do "êi" a norte, monotongação "ê" a sul e diferenciação "âi" em Lisboa);
2. que aceitava o testemunho do Rui Tavares para a diferença entre "ideia" e "tareia" nalguns dialectos portugueses (a norte?), apesar de pelo menos em Lisboa isso não se verificar - o que de qualquer modo transforma a frase "Os portugueses pronunciam o “e” aberto em ambas as palavras [ideia e assembleia]" numa sinédoque onde se toma a parte (Rui Tavares) pelo todo (os portugueses);
3. que mesmo admitindo essa variação de pronúncia ela não tem a mesma expressão que no Brasil, onde é consagrada pela escrita e tem carácter não só fonético mas fonológico - no Houaiss há 95 palavras em "eia" (aldeia, areia, teia) e 257 em "éia" (boléia, geléia, platéia) e o grau de abertura do "e" é o traço distintivo que permite separar pares de palavras (pares mínimos) como Medéia/medeia (do verbo medear) e boléia/boleia (do verbo bolear), tal como em Portugal e no mesmo ditongo o acento distingue "papéis" de "papeis";
4. que nos Lusíadas (I, 34) "Citereia" e "Deia" (que no Brasil têm acento) rimam com "arreceia" (que não tem);
5. que, recusando catastrofismos de um lado e de outro, via as previsões do Rui Tavares, no comentário de ontem, para a influência do acordo na fala como puro "wishful thinking", chegando a anunciar um conveniente regresso em Portugal do "p" mudo em "recepção" e "percepção" (nunca os ouvi): precisamente duas das palavras que com o acordo se vão passar a escrever de maneira diferente...
Bom, se por acaso o outro comentário aparecer podem apagar este; ou o outro; ou os dois. Vou agora cruzar os dedos quando carregar no submit, não sem antes copiar tudo para o blogue porque mais vale prevenir. Assina mais um linguista amador que diz não à rehab.
Adenda à adenda: a tecnologia é tua amiga. O outro comentário lá apareceu no 5 dias. Mas deixo ficar aqui este, resumo e ruína, porque me estou a sentir borgesiano, ou romântico alemão.
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