Kieslowski, Hitchcock, Tarkovski e Lynch à luz de Lacan e do materialismo
Slavoj Žižek
Lacrimae Rerum
Orfeu Negro, 2008,
trad. Luís Leitão,
276 págs.
Já com alguns títulos publicados em Portugal na Relógio d’Água, Slavoj Žižek (n. 1949) tem uma aura de estrela pop e é um dos pensadores mais estimulantes da actualidade. Entre o YouTube e a academia, ambos os atributos se alimentam mutuamente, numa estratégia que procura chegar ao máximo de pessoas sem ceder um milímetro na exigência da argumentação. A combatividade do filósofo esloveno identifica claramente os seus inimigos (obscurantistas, desconstrucionistas, apologistas do fim da História e das ideologias), assume as bandeiras dos “instauradores de discursividade”, Marx e Freud (via Lacan) e adora a provocação e o paradoxo. Como bom materialista, não teme o mau gosto, e o seu estilo ensaístico, digressivo, mistura a alta e a baixa cultura, podendo abordar, como em Lacrimae Rerum, as telenovelas mexicanas e Così fan tutte, Kleist e James Bond, a diferença entre moral e ética e o sexo anal em Cuba. O documentário de Sophie Fiennes que Žižek protagoniza, The Pervert’s Guide to Cinema (2006), podia servir como extra deste livro: conta com o poder demonstrativo das imagens de muitos dos filmes referidos e permite corporizar a intensidade veemente do seu discurso.
Lacrimae Rerum é um livro onde se pode ver em acção a máquina de produção textual de Slavoj Žižek. Não é uma obra concebida enquanto tal, embora tenha uma unidade que resulta de juntar quatro ensaios sobre quatro cineastas escritos durante o mesmo período (1999-2001). Destes textos, abreviados para a publicação conjunta, dois eram livros independentes (Kieslowski e Lynch) e dois eram artigos, disponíveis online e já reunidos em obras colectivas (Hitchcock e Tarkovski). A colectânea, primeiro editada em França, é um hábil trabalho de montagem, embora deixe costuras à mostra: o texto sobre Kieslowski remete para um capítulo anterior que já não existe, há aspectos “atrás referidos” que não o foram e exemplos repetidos tal e qual, sem preocupações de reescrita.
A circulação de exemplos e anedotas entre vários livros é aliás própria do estilo de Žižek, funcionando de modo semelhante aos motivos recorrentes na obra de Hitchcock (a espiral, a personagem prestes a despenhar-se…), na medida em que, inseridos na argumentação/narrativa, representam um excesso (jouissance, diria Lacan) relativamente ao sentido que é muitas vezes aquilo que persiste na memória fascinada do leitor/espectador. A digressão é outra característica da escrita de Žižek, interrompendo a análise de um autor para explorar longamente caminhos paralelos que se estendem pelas notas de rodapé e voltar, quando já nada o fazia prever, ao assunto abandonado, como cartas amarrotadas que acabam por chegar ao seu destino.
“A teologia materialista de Krzysztof Kieslowski” lê a obra do realizador como um percurso onde até a sua própria morte encaixa na interpretação. Sendo o mais longo dos textos (metade do livro), o mais recente e também aquele de onde vem a citação de Virgílio que dá o título ao volume, é o que contém mais dos tais excursos repletos de iluminações, podendo ler-se como hipertexto que remete para os ensaios seguintes nas referências que faz aos outros cineastas – e particularmente a Tarkovski, “o homólogo russo de Kieslowski”. No caso destes dois autores o propósito de Žižek é semelhante: reler os seus filmes não à luz da espiritualidade e do “obscurantismo New Age” habituais mas com uma lente materialista, sublinhando no russo o peso da terra e a densidade do tempo e, no polaco, uma tensão não resolvida entre o significado que subjaz misteriosamente aos acidentes ou que pelo contrário é um produto desses mesmos acidentes. Se Žižek os redime (com ironia, não pelo lado místico mas pela fisicalidade dos seus filmes), continua a haver neles um momento falso a denunciar.
Também em Lynch espreita a leitura espiritualista, mas aqui, apesar dos seus defeitos, Žižek vê-a como superior àquela que se contenta com a ausência de sentido de imagens e sons hipnóticos. Estrada Perdida é analisado como uma sequência realidade-fantasia-realidade, onde o protagonista passa de um nível para outro quando é incapaz de lidar com o mesmo trauma apresentado de diferentes modos, e, depois, aproximando a sua circularidade da da própria terapia psicanalítica. Já o texto sobre Hitchcock, mesmo na apologia que faz da sobreinterpretação, é menos ambicioso do que os que figuram em Everything You Always Wanted to Know about Lacan (But Were Afraid to Ask Hitchcock).
Lacrimae Rerum é uma boa súmula da atenção que Žižek tem dedicado ao cinema, não apenas através da apropriação selvagem com o fim de pôr a nu os mecanismos ideológicos mas em nome do mesmo “amor verdadeiro” que, em Psico, faz Norman Bates dar a Marion a chave do quarto fatídico... A tradução é conseguida, embora não imune a críticas: “crane shots” primeiro mal (“planos dos guindastes”) e depois bem (“planos de grua”), confusão entre A Mãe e Mãe Coragem de Brecht e “valor acrescentado” em vez de “mais-valia” são alguns dos (poucos) problemas encontrados numa tarefa dificultada pela amplitude das áreas em que Žižek se move.
[Expresso-Actual, 05.07.08]
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