sexta-feira, 6 de junho de 2008

No Dice


Se um espectador me diz: "O filme que vi é mau", eu digo-lhe: "A culpa é tua, pois o que é que fizeste para que o diálogo fosse bom?"
Lembrei-me desta citação de Godard, que costumava estar afixada numa parede da Abril em Maio, ao ver o espectáculo No Dice dos nova-iorquinos Nature Theatre of Oklahoma, em cena até ao próximo sábado no festival Alkantara ("No dice" pode-se traduzir por "Nada feito"; e o nome do grupo vem de América de Kafka). O NTO gravou 100 horas de conversas telefónicas entre membros da companhia e amigos ou familiares, e o que ouvimos é uma montagem disso - transfigurada por um estilo de representação onde cada frase é espremida até esgotar todas as suas possibilidades melodramáticas. A conversa mais banal torna-se, num primeiro momento, absurdamente cómica, mas o mais interessante é o peso que aquelas trivialidades ganham apenas por terem sido obsessivamente registadas e incluídas num espectáculo. Faz-nos olhar para as nossas conversas de todos os dias, despreocupadas e parvas, com o grau de responsabilidade que pede Godard: a culpa é nossa.
No Dice ganha ainda 10 pontos de bónus por citar longamente Céline et Julie vont en bateau de Jacques Rivette. A maneira como o grupo trabalha a duração, deixando que cada cena se instale e conquiste a sua realidade própria, por vezes até à exaustão, já me tinha feito pensar no tempo rivettiano, mas achei que eram delírios pessoais. Só que tinha havido já uma referência a uma rapariga que trabalhava numa biblioteca de magia, e também se fala de M&M's que fazem dançar (em raccord com os rebuçados do filme, que permitem entrar na casa onde o tempo parou); e eu não prestei atenção a essas pistas até ao momento em que se recria a audição de Julie fazendo-se passar por Céline, em francês e com toda a coreografia a que temos direito. Mesmo a duração do espectáculo pode ser vista como uma homenagem a Rivette e a Out 1, com uma versão longa de 11 horas e uma versão curta (a que veio a Lisboa) de apenas 4. Que não custam nada a passar, até porque há sanduíches e bebidas refrigeradas, no início e no intervalo. Como o grupo diz no texto de apresentação, "Venham pela magia, fiquem pelas sandes de fiambre!"

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